26 de março de 2020

De Folhas e Gaivotas

Foto de Sarah Galahad

Com alguma apreensão o Velho pousou a mão sobre o puxador da porta de casa. A porta que não abria desde o primeiro dia do ano. Esse primeiro dia que para ele tinha sido o último. Esse dia em que tinha recebido nas mãos as cinzas da filha e dito adeus para sempre aos outros. Adeus ao irmão, aquele irmão a quem ainda só falava porque ela lho pedia e adeus à Mimi que por tudo o que significava, ele decidira finalmente adormecer para sempre nesse dia também.

Desde esse dia e até hoje, fechado em casa, não abrira mais aquela porta. Nem ouvira mais o mundo. Desligara a corrente de tudo o que o poderia afastar da sua dor. Eliminara a possibilidade do ânimo. Arrancara pelos cabelos os fios de cobre que o ligavam ao exterior e aos outros. Nem telefone, nem TV, nem net, nem nada. Os únicos recursos que continuavam a correr livres, do mundo para o seu luxuoso apartamento na Avenida da Liberdade, eram a água com que se lavava meticulosamente todas as manhãs e a eletricidade que o iluminava enquanto escrevia. E todo esse tempo escrevera. Todo o dia. Todos os dias. Comendo bolachas e bebendo rum. Já perceberam certamente. O Velho era um escritor.

Hoje, aqui, de puxador na mão, tinha-se finalmente decidido a abrir a porta. Iria levar à filha o escrito destes últimos meses de clausura. Uma ode à fúria e ao ódio e também ao seu amor por ela. Ele sabia que aquela era a sua obra maior e não via a hora de ler-lha em voz alta, de pé, em frente à Árvore, onde se entranhavam ainda nas raízes, as suas delicadas cinzas. O Velho era um grande declamador e sabia por isso que ela ia gostar.

Abriu finalmente a porta e olhou para ambos os lados do corredor. Não viu ninguém. A dizer a verdade não queria ver ninguém. A gente no geral incomodava-o e os vizinhos sobretudo causava-lhe tanta repulsa quanto as baratas da cave que via quando despejava o lixo lá em baixo. Agora tinha de chamar o elevador, e descer à rua. E depois disso caminhar até à Árvore dela pelo meio da multidão de terça-feira à tarde. O Velho não gostava assim muito dos outros seres humanos.

Levava o seu escrito numa pasta amarela. Enrolada e metida no bolso do seu melhor sobretudo de pelo de camelo. Levava também um elegante lenço colorido ao pescoço para esconder a magreza estrema que tanto escrever lhe tinha causado. Sabia que acabaria por se cruzar com os seus obsoletos amigos que como sempre, mortos que estavam, o maçavam com os temas senis da beleza do ontem e a aparente inexistência da mesma no dia de amanhã. Para esses encontros gostava ainda de manter um certo vestígio de aplomb. O Velho era um vaidoso.

Desceu a Avenida e virou à direita para a Praça da Alegria. Subiu vagarosamente a Rua da Mãe d´Água até ao chafariz e subiu ainda com maior esforço os degraus até ao largo da Calçada da Patriarcal onde sentiu o suave perfume das suas laranjeiras. A princípio nada lhe parecera diferente do habitual. Mas apercebia-se agora do profundo silêncio que o envolvia. Ouvira lá atrás o murmúrio das árvores da Avenida, é certo. Ouvira também o chilrear de alguns pardais e um abafado grito de gaivotas vindo de longe. Talvez um ou outro som de céu, nuvens e assim. Mas da cacofonia habitual do trânsito, nada. Nem do estridente som dos aviões. Nós sabemos que os velhos são um bocado surdos. Não era isso. O Velho constatava agora não ter visto vivalma desde que tinha saído de casa. O Velho, agora na rua, continuava só.

Subiu os últimos degraus até à Praça do Príncipe Real. Ninguém. Sempre ninguém. O quiosque fechado. Portas e portas cerradas em fila. Um cão, passando num trote ligeiro, levantou brevemente um olhar curioso na sua direção, logo seguindo caminho para os lados da Misericórdia. O Velho tocou com os dedos nodosos a pasta com os seus escritos para confirmar o seu propósito e atravessou a rua deserta. Aquela ausência de gente não o assustava, mas deixava-o perplexo. E se a cidade tivesse sido abandonada enquanto ele escrevia em casa? E se uma doença estranha tivesse matado todos de repente? O Velho era um escritor e tinha muita fantasia.

A Árvore pelo menos estava ali do outro lado do jardim. O Velho atravessou o pequeno prado molhado e sentiu um esguicho de água que lhe atingiu o rosto e lhe molhou o sobretudo de pelo de camelo. Apesar de não haver ninguém na rua, os aspersores continuavam a regar. Por quanto tempo? Sem gente para cuidar deles por quanto tempo regariam a relva? Até que esta, de tão alta, os impedisse de o fazer? Pela primeira vez neste dia e para dizer a verdade, em todo este ano, o Velho sorriu.

O Velho olhou para a Árvore. E notou que a cara da filha aparecia agora esculpida nos velhos nós da sua casca e também desenhada em delicados retículos verdes sobre a superfície das suas folhas. E então o Velho leu. Leu a sua ode à fúria e ao ódio e também ao seu amor pela filha. Leu como se nada mais existisse. De um fôlego. Num longo e ritmado grito. Lia alto para ela, mas queria que todos ouvissem. Lia para todos os que aparentemente se tinham ido embora. O Velho no fundo gostava de público.

Nessa bonita tarde de terça-feira, levantou-se então um forte vento. Numa janela do terceiro andar do número 32 da Rua da Escola Politécnica, uma pesada cortina adamascada pareceu por um segundo entreabrir-se ao toque dele.

O Velho ouviu então como que um uivo e viu uma ambulância vir na sua direção através do Jardim, de sirenes em riste, fintando árvores, saltando canteiros, esmagando relvas e flores. Quando finalmente estacou na sua frente, dela saíram aquilo que lhe pareceram ser dois astronautas, insuflados num uniforme branco, máscaras e garrafas de ar pressurizado. Quando o agarraram, o Velho que continuara a declamar naquele longo e ritmado grito apercebeu-se que o seu escrito lhe tinha escapado das mãos.

Então, o Velho calou-se. E num vendaval, todas aquelas páginas brancas, cheias de uma escrita invisível, uma indelével ode à fúria, ao ódio e ao seu amor por ela, voaram livres como gaivotas, na direção do Bairro Alto e dali para o rio e depois para o mar.     

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