Escrevi este texto na e para a Cinemateca Portuguesa, num dos ciclos que se dedicou a Manoel de Oliveira. No final dos anos 80, há mais de 30 anos.
Por norma, sobre Manoel de Oliveira escrevia João Bénard da Costa. E minto, o que este texto atesta, para não falar do que o João me deixou escrever sobre a Francisca ou os que pediu a outros meus camaradas programadores. Trago-o, aqui, o meu texto sobre Mon Cas, a este Escrever é Triste, casa de arquitectos, para que me julguem com veemência, mas não sem compaixão.
Se fosse hoje, e neste pestífero tempo de sofrimento, ter-me ia alongado mais sobre o "Livro de Job" que, a certo momento, arrebata o filme.
Mon Cas
tal como o viu Manuel S. Fonseca
1. À primeira
vista, Mon Cas é o mais ligeiro dos
filmes, o “divertissement” de um Oliveira triunfante. Quase nada, salvo o quantum continuum que é o teatro, parece
associar este filme ao opus magnum
que era Soulier de Satin, filme de
1985, imediatamente anterior a este. É verdade que há ainda planos muito longos
e que cada personagem tem o seu monólogo, mas o estatismo hierático da câmara e
dos actores, bem como a sucessão de “recitativos” dos personagens do Soulier, são substituídos por uma
surpreendente leveza que nos faz pensar no teatro de boulevard e nas comédias do cinema mudo.
Convém
todavia estar atento à metodologia de Oliveira. Em Mon Cas o cineasta procede como um arquitecto. A ligeireza não é
senão um primeiro diagrama, correspondendo ao “plano de terra”. Oliveira
levantará depois a pirâmide visual do “alçado” e só a combinação desses dois
conjuntos, desses dois diagramas, nos permite obter a imagem em perspectiva, a
unidade perfeita da tremenda inocência e da tremenda crueldade que Mon Cas encerra. Compreende-se então
que, na sua aparente diversidade, Mon Cas
nos conduz ao eterno centro da obra de Oliveira, à culpa, ao pecado e à
justiça, às relações, enfim, entre o humano e o divino.
2. Mon Cas é a adaptação da peça de José
Régio. Dir-se-ia que Manoel de Oliveira se apropria duplamente do texto de
Régio. Em primeiro lugar, encena-o segundo convenções teatrais, afirmadas de
modo evidente e inequívoco através da presença ritualizada da cortina, de
definição de um espaço e tempo cénicos que os cenários nunca iludem e que as
“entradas” dos actores reforçam. Mas se Oliveira é o encenador de Régio, ele é, num segundo tempo, o realizador do filme que regista a sua própria encenação,
fiel de resto a um dos princípios teóricos que comandou a sua obra dos anos 80,
segundo o qual o cinema mais não é do que o registo audiovisual do teatro,
forma subtil de dizer que o teatro é o “caminho mais curto” para se chegar ao
cinema.
3. É curioso
verificar que aquela dupla apropriação não significa que tenha havido da parte
do cineasta uma irrepreensível fidelidade ao espírito da peça de Régio. Na
adaptação de Oliveira sente-se que há um deslocamento do nó temático. O
conflito entre a ilusão da representação e o drama da condição humana, presente
ainda nos diálogos e monólogos dos personagens, só acessoriamente parece
motivar Oliveira. Mon Cas é um filme
em que se pressente uma ilimitada confiança na representação, quase se
admitindo que não há um exterior da representação. Se o problema da peça era, a
meu ver, de tipo ético, o do filme é estético “tout court”: o que é a geometria
cinematográfica, como chegar à “costruzione legittima”?
4. Por isso
se diz que Oliveira procede em Mon Cas
como um arquitecto. É um filme sobre a perspectiva, sobre a unidade de dois
planos - horizontal e vertical. A explicitação desses dois planos é evidente e
múltipla ao longo de todo o filme. É um filme ligeiro e grave, já se disse. Da
explanação linear do texto de Régio que constitui a primeira repetição,
passa-se a modelos contrastantes, escasso o da segunda repetição, marcada pela
ausência da voz e da cor; excessivo o da terceira repetição, com o caos da voz
(conseguindo pela sua inversão simples) e o barroco da cor. A esse contraste no
interior das “repetições” sucede-se a violenta variação de tom (para alguns, e
à primeira vista, passará por ser um desequilíbrio) da quarta parte. A
adaptação dos extractos do “Livro de Job”, muda o registo meio artesanal, meio
hollywoodiano (foi Bulle Ogier quem, numa entrevista, o disse: «o que é curioso é que em Oliveira tudo é
artesanal, mas de repente também é como Hollywood»), para um registo que se
aproxima do cinema de Schroeter.
5. Mas então,
onde é que está a unidade, em que ponto é que os dois planos, os dois diagramas
se combinam para formar a imagem em perspectiva? É quando a unidade parece já
impossível, que os dois diagramas convergem para o ponto de fuga de Mon Cas. Sem o “Livro de Job”, o filme
de Oliveira seria o “divertissement” que alguns encontram nas três repetições,
compadecendo-se da gravidade da quarta. O ponto de fuga de Mon Cas é Deus, perfeita unidade de que emanam o som (o potente
trovão da Sua voz) e a luz (a claridade súbita do Seu raio). Talvez seja curto
dizer isto, mas Deus, no filme de Oliveira é o cinema na mais essencial nudez.
Ou então, para dizer de outro modo, o cinema não é senão a descoberta de Deus,
a Sua revelação.
6. Será Mon Cas a alegórica exposição do caso de
Oliveira? Será Mon Cas o mais
explicitamente autobiográfico dos seus filmes? Seríamos tentados a pensar
assim, se isolássemos cada um dos dois “planos” do filme. À exposição dos
“casos” da peça de Régio, seguir-se-ia a exposição do “caso de Oliveira”
implícito na alegoria de Job. Mas a unidade dos dois “planos”, a visão dos dois
planos numa imagem em perspectiva, torna irrisória essa tentação de leitura do
filme pelo lado autobiográfico. Torna-a ao menos desinteressante. O problema do
filme, já se disse, não é ético, é estético. E se alguma tensão há, ela é de
ordem teológica, fazendo de Deus a justificação última de toda a história. Da
mesma forma que Oliveira ironiza cruelmente sobre os “casos” da peça de Régio,
tornando-se inaudíveis ou incompreensíveis (parafraseando o texto de Beckett,
Oliveira não permite na segunda a terceira repetição que nenhum dos personagens
volte a dizer “eu”), também Job, na quarta parte, não pode ser um “caso”,
porque “nenhum homem poderia ser justo contra Deus”.
7. Mon Cas é uma portentosa exibição da
vertente do cinema que Oliveira nunca deixou de explorar (e no Soulier
há abundantes exemplos), mas que talvez nunca tivesse explorado, até este
filme, com tanta inocência. Seria fastidioso acumular exemplos, bastará ver a
segunda repetição, um dos momentos soberanos
do cinema em Oliveira, com uma
prodigiosa découpage (acrescente-se
que a ideia de “repetição” é um “trompe l’oeil”, uma vez que neste filme uno,
todos os elementos são diversos e nenhuma acção é igual à anterior).
Mon Cas é também, para quem tenha “problemas” com a representação dos
actores nos filmes de Oliveira - questão absurda, mas que alguns têm como óbvia
e pertinente - uma surpresa incómoda. Uma direcção de actores espantosa em que
o trabalho de Alex Bougosslavsky domina, comovente e sublime, como sublime é o
plano em que Luís Miguel Cintra (Job) se levanta para responder à interpelação
de Bildad: «Je dirais a Dieu: ne me
condamne pas.»
8. Este é Mon Cas de Manoel de Oliveira, a sua
cidade ideal, a impossível Jerusalém terrestre, o mais geométrico dos seus
filmes. E é, como as visões de Brunelleschi, de Alberti, de Piero della
Francesca e de Leonardo da Vinci, uma visão através de algo. A sua “costruzione
legittima”.