31 de março de 2020

Uma aventura... a ir pôr o lixo



Primeiro fico todo nu. Visto umas luvas, que são sempre o terceiro par, porque os dois primeiros costumo rasgá-los antes de os enfiar pelos dedos. Passo ao hall de casa, contaminado, imagino, de minúsculos coronas com ar perfeitamente idiota - percebo inteiramente que os anticorpos o ataquem mais do que é preciso. 
No hall contaminado, visto uma roupa igual à última que levei à rua depois de ter sido previamente lavada numa máquina cujos índices de detergente, diz a Organização Mundial de Saúde, são perfeitamente adequados à destruição da camada gordurosa que envolve o vírus.


Center for Desease Control
Center for Desease Control
 Calço os últimos sapatos que levei à rua durante os dias de pandemia e coloco no bolso apenas as chaves de casa.
Alinhados pela diretora-geral deste meu emprego, estão diversos sacos: um fechado e vários abertos; destes, um é dedicado ao vidro, outro ao cartão e outro ao plástico.
Saio do hall de casa para o patamar das escadas. Toco no botão de chamada com o nó de um dedo protegido pela luva. Entro, sem tocar em nada, de sacos a bambolear com a ginástica necessária. Com o nó do dedo enluvado marco o zero. Uns segundos depois a porta abre-se e atravesso o átrio do prédio sem ver vivalma. A porta é elétrica e o sacrificado nó do dedo serve para a destrancar, ao mesmo tempo que com o pé a puxo bruscamente para passar enquanto ela vai e vem (e folgam as costas, quando ela não me acerta em cheio).
Viro à direita, dou cinco passos e chego a outra porta com uma chave especial e estranha que coloco na respetiva fechadura. Abre-se imediatamente e no cubículo de dimensões razoáveis alinham-se vários caixotes de plásticos uniformizados. Abro um deles e deixo cair o saco fechado - é lixo indiscriminado, que não sofre como o plástico, o vidro e o cartão os horrores do apartheid.
Saio do cubículo, atravesso a rua. Há três monstros de plástico que recolhem o lixo discriminado e, porventura, indignado por tal discriminação (uma garrafa vazia de Bushmills não pode confraternizar com o invólucro de cartão da Wooks e menos com um velho saco do El Corte Inglês).
Passado um momento em que salto em cima das embalagens de cartão para caberem na abertura do seu destino, volto à esquerda, atravesso a rua e com o mesmo nó do dedo marco o código que me abre a porta do prédio. 
Subo o elevador já despojado de empecilhos, e entro em casa. No hall, onde vivem os coronas, fico todo nu e, enquanto a roupa vai para máquina e vou para a banheira. 
A operação dura entre cinco e dez minutos!
Sim, eu cumpro as medidas todas. Mas, não sei porquê, sinto que um dia alguém há de olhar para isto como nós  para os bicos enormes dos médicos, durante a peste negra. 
De qualquer modo, é uma vida animada!

30 de março de 2020

Diário - tempo de pandemia - Em Casa 03


em casa 03

Vigésimo dia de isolamento social.

Todas as árvores da avenida estão agora em verde tenro acabado de verdecer e a estrada secou. A chuva foi pouca e miúda. Aqui em casa a música é muito boa, Thelonious Monk, Coltrane, Chet Baker… Estou a ouvir este Coffee Cold, queria escrever no ritmo, mas o teclado não vai nisso. Vou abanando a cabeça em estilo Maio de 68. Sempre tive a paixão do jazz. E adoro, mas adoro a desmaterialização da música e todos os hábitos que trouxeram o futuro para hoje. E o passado. É prodigiosa a técnica. 

Vigésimo dia. Não serei exactamente o Velho que o Vasco escreveu em De Folhas e Gaivotas. Desligo o telefone menos vezes e por menos tempo. Falo mais e com mais pessoas. Até já joguei House Party. Inacreditável, eu sei. Mas ainda estou muito longe do óptimo social. A verdade é que prefiro tomar café com Borges, em livro, a tomar café com quase toda a gente. E isto é uma perfídia. Mas viver assim rodeada também é uma alegria e um luxo. O meu querido Scruton, que não me fez a fineza de ser eterno, foi no outro dia, mesmo antes desta virulência, comigo para a cozinha fazer o jantar. Gosto tanto de estar na cozinha a conversar antípodas culinários enquanto eu de volta do fogão, prova lá, precisa de sal, não é? Mas não há muita gente de carne e osso e amor com quem se fale da poética da vida entre temperos e raciocínios mirabolantes e risíveis e sérios. As melhores ideias surgem-me quando estou a passear, a cozinhar, ou a ler poesia. Invariavelmente. As piores não precisam de suporte, são constantes. Num mundo perfeito, o melhor dos meus maridos, Steiner, faria podcasts do além e nós, cá, religiosos no verbo amar, a sintonizar dispositivos.

Às vezes penso que penso para não pensar. Aquela mulher no jornal da sic-n a dizer que esperava ser contaminada e morrer. Tão bonita. Uma mulher jovem. A jornalista a perguntar-lhe porquê à espera da óbvia resposta. E ela veio vestida de outra maneira: para descansar desta vida. Um campo de refugiados não é vida. Querer viver assim é ser louco. Descansar. Não há colcha nem casinha que te guardem nem HOPE. Somos espectadores destas assimetrias letais e outros monstros de sombra. A impotência é uma erva daninha e a arte salva-nos. Não a ela, no entanto.

Não vou à Gulbenkian, nem à Versailles nem à minha Dava onde encomendo o pão e as tâmaras. Não dou longos, nem curtos, passeios a pé enquanto espero o regresso da bicicleta. Saio para ir ao ecoponto para plásticos, papel e vidros agora que só há recolha de lixo orgânico. Vou ao supermercado uma vez por semana. Nestes tempos de solidariedade e abraços de arco-íris ainda não consegui comprar um pacote de farinha, nem um frasco de álcool. Desaparece tudo. Deve ser aquela malta dos quinhentos rolos de papel higiénico, aposto que têm na despensa vinte frascos de álcool e quinze quilos de farinha. Se me açambarcam o café, é bem capaz de haver uma revolução. Chego a casa como quem vem de uma central contaminada, sapatos ali, roupa na máquina, duche, ai porra que me esqueci limpar os iogurtes antes de os meter no frigorífico, e a papaia, faço-lhe o quê?

E há as listas.
. Ontem revi Arrival. Que bom filme.
. Estou a fazer um dos cursos online e gratuitos que Harvard disponibiliza.
. Li a Apologia de Sócrates que o Manuel Fonseca fez e só me apetece escrever ficção ateniense mas estou presa a um conto e liberdade não há.

Espero.

Mon Cas, O Meu Caso do senhor Manoel de Oliveira


Escrevi este texto na e para a Cinemateca Portuguesa, num dos ciclos que se dedicou a Manoel de Oliveira. No final dos anos 80, há mais de 30 anos.
 Por norma, sobre Manoel de Oliveira escrevia João Bénard da Costa. E minto, o que este texto atesta, para não falar do que o João me deixou escrever sobre a Francisca ou os que pediu a outros meus camaradas programadores. Trago-o, aqui, o meu texto sobre Mon Cas, a este Escrever é Triste, casa de arquitectos, para que me julguem com veemência, mas não sem compaixão.
Se fosse hoje, e neste pestífero tempo de sofrimento, ter-me ia alongado mais sobre o "Livro de Job" que, a certo momento, arrebata o filme.




Mon Cas

tal como o viu Manuel S. Fonseca


1. À primeira vista, Mon Cas é o mais ligeiro dos filmes, o “divertissement” de um Oliveira triunfante. Quase nada, salvo o quantum continuum que é o teatro, parece associar este filme ao opus magnum que era Soulier de Satin, filme de 1985, imediatamente anterior a este. É verdade que há ainda planos muito longos e que cada personagem tem o seu monólogo, mas o estatismo hierático da câmara e dos actores, bem como a sucessão de “recitativos” dos personagens do Soulier, são substituídos por uma surpreendente leveza que nos faz pensar no teatro de boulevard e nas comédias do cinema mudo.
Convém todavia estar atento à metodologia de Oliveira. Em Mon Cas o cineasta procede como um arquitecto. A ligeireza não é senão um primeiro diagrama, correspondendo ao “plano de terra”. Oliveira levantará depois a pirâmide visual do “alçado” e só a combinação desses dois conjuntos, desses dois diagramas, nos permite obter a imagem em perspectiva, a unidade perfeita da tremenda inocência e da tremenda crueldade que Mon Cas encerra. Compreende-se então que, na sua aparente diversidade, Mon Cas nos conduz ao eterno centro da obra de Oliveira, à culpa, ao pecado e à justiça, às relações, enfim, entre o humano e o divino.

2. Mon Cas é a adaptação da peça de José Régio. Dir-se-ia que Manoel de Oliveira se apropria duplamente do texto de Régio. Em primeiro lugar, encena-o segundo convenções teatrais, afirmadas de modo evidente e inequívoco através da presença ritualizada da cortina, de definição de um espaço e tempo cénicos que os cenários nunca iludem e que as “entradas” dos actores reforçam. Mas se Oliveira é o encenador de Régio, ele é, num segundo tempo, o realizador do filme que regista a sua própria encenação, fiel de resto a um dos princípios teóricos que comandou a sua obra dos anos 80, segundo o qual o cinema mais não é do que o registo audiovisual do teatro, forma subtil de dizer que o teatro é o “caminho mais curto” para se chegar ao cinema.

3. É curioso verificar que aquela dupla apropriação não significa que tenha havido da parte do cineasta uma irrepreensível fidelidade ao espírito da peça de Régio. Na adaptação de Oliveira sente-se que há um deslocamento do nó temático. O conflito entre a ilusão da representação e o drama da condição humana, presente ainda nos diálogos e monólogos dos personagens, só acessoriamente parece motivar Oliveira. Mon Cas é um filme em que se pressente uma ilimitada confiança na representação, quase se admitindo que não há um exterior da representação. Se o problema da peça era, a meu ver, de tipo ético, o do filme é estético “tout court”: o que é a geometria cinematográfica, como chegar à “costruzione legittima”?

4. Por isso se diz que Oliveira procede em Mon Cas como um arquitecto. É um filme sobre a perspectiva, sobre a unidade de dois planos - horizontal e vertical. A explicitação desses dois planos é evidente e múltipla ao longo de todo o filme. É um filme ligeiro e grave, já se disse. Da explanação linear do texto de Régio que constitui a primeira repetição, passa-se a modelos contrastantes, escasso o da segunda repetição, marcada pela ausência da voz e da cor; excessivo o da terceira repetição, com o caos da voz (conseguindo pela sua inversão simples) e o barroco da cor. A esse contraste no interior das “repetições” sucede-se a violenta variação de tom (para alguns, e à primeira vista, passará por ser um desequilíbrio) da quarta parte. A adaptação dos extractos do “Livro de Job”, muda o registo meio artesanal, meio hollywoodiano (foi Bulle Ogier quem, numa entrevista, o disse: «o que é curioso é que em Oliveira tudo é artesanal, mas de repente também é como Hollywood»), para um registo que se aproxima do cinema de Schroeter.

5. Mas então, onde é que está a unidade, em que ponto é que os dois planos, os dois diagramas se combinam para formar a imagem em perspectiva? É quando a unidade parece já impossível, que os dois diagramas convergem para o ponto de fuga de Mon Cas. Sem o “Livro de Job”, o filme de Oliveira seria o “divertissement” que alguns encontram nas três repetições, compadecendo-se da gravidade da quarta. O ponto de fuga de Mon Cas é Deus, perfeita unidade de que emanam o som (o potente trovão da Sua voz) e a luz (a claridade súbita do Seu raio). Talvez seja curto dizer isto, mas Deus, no filme de Oliveira é o cinema na mais essencial nudez. Ou então, para dizer de outro modo, o cinema não é senão a descoberta de Deus, a Sua revelação.

6. Será Mon Cas a alegórica exposição do caso de Oliveira? Será Mon Cas o mais explicitamente autobiográfico dos seus filmes? Seríamos tentados a pensar assim, se isolássemos cada um dos dois “planos” do filme. À exposição dos “casos” da peça de Régio, seguir-se-ia a exposição do “caso de Oliveira” implícito na alegoria de Job. Mas a unidade dos dois “planos”, a visão dos dois planos numa imagem em perspectiva, torna irrisória essa tentação de leitura do filme pelo lado autobiográfico. Torna-a ao menos desinteressante. O problema do filme, já se disse, não é ético, é estético. E se alguma tensão há, ela é de ordem teológica, fazendo de Deus a justificação última de toda a história. Da mesma forma que Oliveira ironiza cruelmente sobre os “casos” da peça de Régio, tornando-se inaudíveis ou incompreensíveis (parafraseando o texto de Beckett, Oliveira não permite na segunda a terceira repetição que nenhum dos personagens volte a dizer “eu”), também Job, na quarta parte, não pode ser um “caso”, porque “nenhum homem poderia ser justo contra Deus”.

7. Mon Cas é uma portentosa exibição da vertente do cinema que Oliveira nunca deixou de explorar (e no Soulier há abundantes exemplos), mas que talvez nunca tivesse explorado, até este filme, com tanta inocência. Seria fastidioso acumular exemplos, bastará ver a segunda repetição, um dos momentos soberanos do cinema em Oliveira, com uma prodigiosa découpage (acrescente-se que a ideia de “repetição” é um “trompe l’oeil”, uma vez que neste filme uno, todos os elementos são diversos e nenhuma acção é igual à anterior).

Mon Cas é também, para quem tenha “problemas” com a representação dos actores nos filmes de Oliveira - questão absurda, mas que alguns têm como óbvia e pertinente - uma surpresa incómoda. Uma direcção de actores espantosa em que o trabalho de Alex Bougosslavsky domina, comovente e sublime, como sublime é o plano em que Luís Miguel Cintra (Job) se levanta para responder à interpelação de Bildad: «Je dirais a Dieu: ne me condamne pas.»

8. Este é Mon Cas de Manoel de Oliveira, a sua cidade ideal, a impossível Jerusalém terrestre, o mais geométrico dos seus filmes. E é, como as visões de Brunelleschi, de Alberti, de Piero della Francesca e de Leonardo da Vinci, uma visão através de algo. A sua “costruzione legittima”.




29 de março de 2020

Amor em tempos de quarentena





Quarentena, dia 17. D. José, abandonado à sua sorte. 


Conheci-a na divisão lá de casa onde, no escuro das persianas corridas, se projetavam filmes e séries em streaming – muito mais séries do que filmes, para dizer a verdade - e que, pomposamente, chamávamos de “sala de cinema”. Na tela, passava um episódio de Black Mirror. Porque não pude deixar de reparar num certo ar de enfado que fez questão em exibir, a minha educação levou-me a perguntar-lhe, no final da história, se não se importava que prosseguisse para o episódio seguinte. A sua resposta surgiu, enfadada também: porque haveríamos de continuar a ver o Black Mirror se já estávamos, na nossa vida de todos os dias, a cada minuto da nossa existência confinada, dentro de um episódio da série? Não seria mais saudável a ilusão de uma escapadela à realidade que uma banal história de amor, protagonizada por pessoas normais, nem feias nem bonitas, nem ricas nem pobres, nos poderia dar? Sim, porque não, disse-lhe, tentando disfarçar ao máximo a estranha sensação que de mim se apoderara. Algumas semanas fechado em casa e já me parecia coisa de outro mundo, de um tempo passado, uma espécie de ficção científica invertida, um anacronismo quase sem memória, um gesto antes tão habitual, tão essencial à minha condição, como atentar numa simples história de amor, fosse ela contada numa tela de cinema, nas páginas de um livro ou nos versos de uma canção. “Todas as canções são canções de amor”, lembrava-me de ter lido ou ouvido vezes sem conta toda a comunidade de críticos musicais dizê-lo, com a solenidade e o absolutismo da sua autoridade moral, agora tão desfeita quanto desfeita estava a noção de comunidade com que crescera.

Acabei, claro, por me deixar vencer pelo seu argumento e, juntos – ou melhor, com o distanciamento social que as regras impunham -, vivemos duas horas de comunhão com uma história de amor gravada em casa, Marriage Story do sempre caseiro Noah Baumbach, que, tal como muitas das demais histórias de amor, era mais de desamor e de separação, mesmo quando, como era o caso, as partes desavindas, Scarlett Johansson e Adam Driver, pareciam continuar a amar-se, seja lá o que isso queira dizer, ontem como hoje. A partir daí, sempre guiado pela sua doce ilusão de felicidade, fui ultrapassando a estranheza e o desconforto de um tempo que já não era o meu, de um eu que já não era o meu, e, filme a filme, livro a livro, canção a canção, habituei-me a partilhar aquilo que ela entendia como o seu grito de resistência ao poder destruidor da memória. Sempre na dita sala de cinema, convertida também em espaço de música e de leituras, e cada vez menos respeitadores das regras de distanciamento social, que se ia encurtando à medida da frequência e intensidade das nossas piscadelas de olho, que eu, numa juvenil inconsciência, mimetizava com o automatismo e descontração de um emoji. Nos intervalos de cada sessão, e sem que o tivéssemos combinado, passámos a coincidir na cozinha à hora do pequeno-almoço, e depois na sala de jantar durante as demais refeições. E pensámos, com a naturalidade de quem tem interesses e necessidades em comum, que não seria má ideia partilharmos o mesmo espaço de teletrabalho, ou fazermos juntos o treino físico online, ou dividirmos tarefas na arrumação e limpeza da casa. Enquanto isso, as paredes de casa ganhavam cores de esperança com as suas composições fotográficas de um futuro de libertação com um suave travo a passado, e a acidez e cinismo dos meus textos dava lugar a histórias de fantasia e encantamento. E, claro, nas visitas familiares ou sociais a outras casas, habituámo-nos a convergir no mesmo écran, a uma só voz, a um só aceno de mão, nas saudações e nas despedidas.

Como uma banal e singela de amor, chegou a noite em que, como não podia deixar de ser, estilhaçámos o que ainda restava da distância que nos impedia de sermos dois corpos num só. E, tal como Scarlett e Adam o fizeram numa fase remota da sua história, entregámo-nos, com juras de sangue, suor e lágrimas, ao paradoxo de querermos ser tão livres e independentes quanto unos e indivisíveis no nosso comum caminho.

E tudo prosseguiria como uma banal e singela história de amor, igual às que os filmes, livros e canções retro que ela me trouxe de volta, não fosse esse pequeno detalhe de não sermos nós, ela e eu, duas personagens normais de uma normal história de amor. Não fossemos nós acometidos, logo no momento em que os nossos corpos se uniram, de um desejo irresistível de ir para as ruas e praças desertas, num longo abraço coletivo simbólico, gritar a nossa libertação. De fugirmos para o Terreiro do Paço - onde D. José abandonado à sua sorte combate sozinho as víboras, agora vírus, da oposição - gritar a todos os confinados a nossa vitória sobre as forças invisíveis.


Morreu Mécia de Sena

9
Com Mécia de Sena e Maria de Lurdes Belchior à porta do 939, Randolph Road
A esta nossa tormentosa Primavera, chega a mais outonal das notícias: a do falecimento de Dona Mécia de Sena.
Bati à porta de sua casa, em Santa Barbara, Califórnia, no 939 Randolph Road, em 1986. Pela voz e santa paciência de Mécia de Sena, eu, que julgava saber uma ou duas coisas sobre Jorge de Sena, descobri dele o imenso e brilhante lado escondido da lua. Vi a sala onde, cercado de livros, ouvia música, a secretária a que trabalhava, a mesa a que comia. E descobri que Mécia de Sena, a par da feroz guardiã da obra desse homem com quem partilhou o amor e a vida, era também e sobretudo uma finíssima estudiosa e crítica de poesia e romance, senhora de uma cultura variegada e vastíssima. De tudo isso me falava, e de música, e de ópera, enquanto, diligente, fazia um jantar para 10 ou 14 pessoas, como quem passa manteiga numa torrada. O seu ócio era a actividade.
Mécia revelou-me esse arquipélago de correspondência, acções e intervenções de um Sena imparável, mesmo quando as suas dores físicas o constrangiam, mas não vergavam. De Mécia descobri a irradiante luz própria.
E descobri a alegria simples e o riso: com ela, e com Maria de Lurdes Belchior, tive o picnic da minha vida, numa Missão Espanhola, na costa californiana, a bolinhos de bacalhau e uns inesquecíveis ovos verdes, delícia lusíada degustada com os olhos no imenso oceano que é o Pacífico.
Desse encontro resultou, mais do que uma amizade e um carinho mútuos, a minha admirada devoção por Mécia de Sena, pela sua inteligente persistência, pela sua cultura e rigor, pela descoberta da sua escrita cuidada, arrebatada, fluente e discursiva. Nesse remoto 1986 organizámos juntos um livrinho, Sobre Cinema, reunindo todos os textos que sobre filmes Jorge de Sena escrevera. Depois, quando me fiz editor, Mécia confiou-me as Dedicácias, e várias Correspondências de que destaco o belíssimo carteio de Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner Andresen, exemplo de partilha e amor poético e filosófico.
Já com Isabel de Sena, filha de Mécia e de Jorge, e desde que a idade tornara impossível a Mécia continuar a ser a guardiã literária de Sena, publiquei a Correspondência com Eugénio de Andrade e, há poucos dias, a Correspondência Jorge de Sena–João Sarmento Pimentel, na qual Isabel de Sena, que a organizou, incluiu também algumas cartas assinadas por Mécia de Sena. São, essas cartas, o testemunho do seu brilho intelectual, da sua escrita viva e da sua grandeza humana. É um pequenino orgulho poder juntar-me a essa homenagem que a filha Isabel lhe prestou.
Pimentel
Morreu, no dia 28 de Março de 2020, com 100 anos, Mécia de Sena. Digo-lhe adeus certo de que sou apenas um dos que guarda dela a memória de um ser humano grande e combativo, cheio dessa graça que é a vida. Eis o que nunca se apaga.


17
Na Cinemateca com Mécia de Sena e António M. Costa

28 de março de 2020

Arte em Quarentena

Ana Vidigal

AFTER AIDS (ao sétimo dia de quarentena voluntária, segundo de estado de emergência)
2020
Técnica mista s/papel e tecido
39×35 cm



Um projecto  UMBIGO MAGAZINE

26 de março de 2020

De Folhas e Gaivotas

Foto de Sarah Galahad

Com alguma apreensão o Velho pousou a mão sobre o puxador da porta de casa. A porta que não abria desde o primeiro dia do ano. Esse primeiro dia que para ele tinha sido o último. Esse dia em que tinha recebido nas mãos as cinzas da filha e dito adeus para sempre aos outros. Adeus ao irmão, aquele irmão a quem ainda só falava porque ela lho pedia e adeus à Mimi que por tudo o que significava, ele decidira finalmente adormecer para sempre nesse dia também.

Desde esse dia e até hoje, fechado em casa, não abrira mais aquela porta. Nem ouvira mais o mundo. Desligara a corrente de tudo o que o poderia afastar da sua dor. Eliminara a possibilidade do ânimo. Arrancara pelos cabelos os fios de cobre que o ligavam ao exterior e aos outros. Nem telefone, nem TV, nem net, nem nada. Os únicos recursos que continuavam a correr livres, do mundo para o seu luxuoso apartamento na Avenida da Liberdade, eram a água com que se lavava meticulosamente todas as manhãs e a eletricidade que o iluminava enquanto escrevia. E todo esse tempo escrevera. Todo o dia. Todos os dias. Comendo bolachas e bebendo rum. Já perceberam certamente. O Velho era um escritor.

Hoje, aqui, de puxador na mão, tinha-se finalmente decidido a abrir a porta. Iria levar à filha o escrito destes últimos meses de clausura. Uma ode à fúria e ao ódio e também ao seu amor por ela. Ele sabia que aquela era a sua obra maior e não via a hora de ler-lha em voz alta, de pé, em frente à Árvore, onde se entranhavam ainda nas raízes, as suas delicadas cinzas. O Velho era um grande declamador e sabia por isso que ela ia gostar.

Abriu finalmente a porta e olhou para ambos os lados do corredor. Não viu ninguém. A dizer a verdade não queria ver ninguém. A gente no geral incomodava-o e os vizinhos sobretudo causava-lhe tanta repulsa quanto as baratas da cave que via quando despejava o lixo lá em baixo. Agora tinha de chamar o elevador, e descer à rua. E depois disso caminhar até à Árvore dela pelo meio da multidão de terça-feira à tarde. O Velho não gostava assim muito dos outros seres humanos.

Levava o seu escrito numa pasta amarela. Enrolada e metida no bolso do seu melhor sobretudo de pelo de camelo. Levava também um elegante lenço colorido ao pescoço para esconder a magreza estrema que tanto escrever lhe tinha causado. Sabia que acabaria por se cruzar com os seus obsoletos amigos que como sempre, mortos que estavam, o maçavam com os temas senis da beleza do ontem e a aparente inexistência da mesma no dia de amanhã. Para esses encontros gostava ainda de manter um certo vestígio de aplomb. O Velho era um vaidoso.

Desceu a Avenida e virou à direita para a Praça da Alegria. Subiu vagarosamente a Rua da Mãe d´Água até ao chafariz e subiu ainda com maior esforço os degraus até ao largo da Calçada da Patriarcal onde sentiu o suave perfume das suas laranjeiras. A princípio nada lhe parecera diferente do habitual. Mas apercebia-se agora do profundo silêncio que o envolvia. Ouvira lá atrás o murmúrio das árvores da Avenida, é certo. Ouvira também o chilrear de alguns pardais e um abafado grito de gaivotas vindo de longe. Talvez um ou outro som de céu, nuvens e assim. Mas da cacofonia habitual do trânsito, nada. Nem do estridente som dos aviões. Nós sabemos que os velhos são um bocado surdos. Não era isso. O Velho constatava agora não ter visto vivalma desde que tinha saído de casa. O Velho, agora na rua, continuava só.

Subiu os últimos degraus até à Praça do Príncipe Real. Ninguém. Sempre ninguém. O quiosque fechado. Portas e portas cerradas em fila. Um cão, passando num trote ligeiro, levantou brevemente um olhar curioso na sua direção, logo seguindo caminho para os lados da Misericórdia. O Velho tocou com os dedos nodosos a pasta com os seus escritos para confirmar o seu propósito e atravessou a rua deserta. Aquela ausência de gente não o assustava, mas deixava-o perplexo. E se a cidade tivesse sido abandonada enquanto ele escrevia em casa? E se uma doença estranha tivesse matado todos de repente? O Velho era um escritor e tinha muita fantasia.

A Árvore pelo menos estava ali do outro lado do jardim. O Velho atravessou o pequeno prado molhado e sentiu um esguicho de água que lhe atingiu o rosto e lhe molhou o sobretudo de pelo de camelo. Apesar de não haver ninguém na rua, os aspersores continuavam a regar. Por quanto tempo? Sem gente para cuidar deles por quanto tempo regariam a relva? Até que esta, de tão alta, os impedisse de o fazer? Pela primeira vez neste dia e para dizer a verdade, em todo este ano, o Velho sorriu.

O Velho olhou para a Árvore. E notou que a cara da filha aparecia agora esculpida nos velhos nós da sua casca e também desenhada em delicados retículos verdes sobre a superfície das suas folhas. E então o Velho leu. Leu a sua ode à fúria e ao ódio e também ao seu amor pela filha. Leu como se nada mais existisse. De um fôlego. Num longo e ritmado grito. Lia alto para ela, mas queria que todos ouvissem. Lia para todos os que aparentemente se tinham ido embora. O Velho no fundo gostava de público.

Nessa bonita tarde de terça-feira, levantou-se então um forte vento. Numa janela do terceiro andar do número 32 da Rua da Escola Politécnica, uma pesada cortina adamascada pareceu por um segundo entreabrir-se ao toque dele.

O Velho ouviu então como que um uivo e viu uma ambulância vir na sua direção através do Jardim, de sirenes em riste, fintando árvores, saltando canteiros, esmagando relvas e flores. Quando finalmente estacou na sua frente, dela saíram aquilo que lhe pareceram ser dois astronautas, insuflados num uniforme branco, máscaras e garrafas de ar pressurizado. Quando o agarraram, o Velho que continuara a declamar naquele longo e ritmado grito apercebeu-se que o seu escrito lhe tinha escapado das mãos.

Então, o Velho calou-se. E num vendaval, todas aquelas páginas brancas, cheias de uma escrita invisível, uma indelével ode à fúria, ao ódio e ao seu amor por ela, voaram livres como gaivotas, na direção do Bairro Alto e dali para o rio e depois para o mar.     

A RTP1 também vai ser Escrever é Triste


banner de Ana Vidigal para o EeT, que beleza singela
O velho Escrever é Triste é uma lenda. Escreviam lá 16 ou 17 autores, sei lá. E já levanto um braço para dizer que está mal, qual escreviam, qual quê, desenhavam, fotografavam, diziam poemas. 
Pois bem o Escrever é Triste voltou. Está aqui. Estar aqui e estar tão bonito já é um milagre. Mas o Ricardo Espírito Santos, que eu conheci na SIC, realizador imparável, que fez os mais belos “jornais da Noite”, que deu ao futebol um toque de delicadeza e ambrósia nos muitos jogos que realizou, fez para a RTP um programa, o Novo Mundo Digital, e fez sobre o Escrever é Triste um programa de televisão lindo. Vamos poder vê-lo no dia 4 de Abril, um sábado, às 11 horas da manhã, na RTP 1. Levantem-se dessas camas e mesmo de pijama, e antes do banho recauchutante, deixem-se levar pela câmara e pela narração do Ricardo. Que programa lindo!
Já disse e repito, o Escrever é Triste está agora aqui. Estar aqui, tão vivo, juntando de novo os mesmos autores, ainda mais amigo e solidário, é um milagre anti-pestífero. Uma espécie de antídoto albert-camusiano contra o covid 19. Escrever é Triste e, todavia, tão feliz.

banner de Cruzeiro Seixas para o EeT, que circunflexa surpresa

A crítica em tempos de cólera


NYT. 2014.



Tenho-me perguntado várias vezes qual deve ser o papel de um comentador, de um jornalista, de um analista, de uma qualquer voz no espaço público, em tempos sombrios como os que atravessamos. É para mim claro que não ficam nem podem ficar suspensos, nem o nosso direito, nem sequer o nosso dever de escrutínio em relação aos poderes políticos. Parece-me aliás que isso deve ser particularmente verdade durante a vigência de um estado de emergência que confere ao executivo poderes extraordinários em democracia. O silêncio não é definitivamente opção. A suspensão da crítica também não o pode ser.
Isto dito, parece-me não menos cristalino que os tempos recomendam uma atitude diferente. Esta crise vai testar-nos até ao limite. Antes de mais, e acima de tudo, pelas mortes dos que nos são próximos. Depois pelos efeitos de um confinamento exigente e muito prolongado. Já não seria fácil manter um país inteiro fechado entre quatro paredes durante oito ou dez semanas. Será ainda mais difícil se a esta primeira vaga pandémica se seguir uma segunda e se a um breve afrouxar das medidas de mitigação e de contenção se seguir uma reposição das restrições, empurrando a nossa libertação coletiva bem para lá de Junho.
A tudo isto acresce que, porque nenhum país, nenhum governo, nenhum sistema de saúde do mundo está verdadeiramente preparado para o que aí vem, vão inevitavelmente ser cometidos erros. Alguns deles compreensíveis e toleráveis num contexto de absoluta novidade. Foi assim na China como foi assim em Itália. Está a ser assim nos EUA, no Reino Unido, até em França e na Alemanha. Mas a nossa capacidade para os tolerar ou sequer compreender, vai obviamente diminuir à medida que se somam mortes, infetados e semanas de provação. Com uma facilidade que agora parece difícil de conceber, passaremos, se nada fizermos, de um ambiente de civismo, de compreensão e até de solidariedade para tempos de recriminações, culpados, ressentimentos. Até porque haverá sempre quem os fomente, haverá sempre quem, em nome de particularíssimas agendas políticas ou outras, tenha interesse em cultivá-los. O perigo do desagregar azedo da nossa comunidade é real. Sempre foi assim, aliás, com o medo.
Retomo, pois, o fio à meada. Julgo que o nosso dever de vigilância e escrutínio dos vários poderes em tempos de sombras não é incompatível com a observação de duas regras muito simples. A primeira consiste em refrear a nossa tendência coletiva para o bota abaixo gratuito que continua a ser, em larga medida, a marca maior das redes sociais. A vigilância e a crítica, fundamentais em democracia, ganham em autoridade e em eficácia se forem guardadas para o essencial. A crítica séria não se pode confundir com o alívio azedo das ansiedades que todos legitimamente sentimos. A primeira é para o espaço público. O segundo é para o divã da psicanálise. 
A segunda regra está relacionada com o tom. Pode-se ser contundente sem se ser incendiário. Pode-se ser intransigente sem se ser gratuito. Pode-se ser corajoso sem se ser populista. Os tempos não autorizam silêncios acríticos, mas reclamam muito civismo.
Sobre cada um de nós, analistas, jornalistas, políticos, mas também demais cidadãos, impende, pois, um duplo dever. O de não permitir que a democracia efetivamente se suspenda, o de resistir a quem, em nome do medo e da urgência do momento, quiser sugerir unanimismos acríticos. Mas também o de preservar os laços de civismo e urbanidade que mantêm de pé a casa comum em que vivemos. 
Tudo isto é mais frágil do que parece e a provação só agora começou. 

25 de março de 2020

Liberdade, liberdade

Imagem de Harvard Business Review.



liberdade, liberdade

Estamos imersos em informação, e desinformação, sobre o coronavírus. E porque não sou médica, nem de saúde pública, nem de investigação em qualquer área sequer tangente, limito-me a seguir as directivas da OMS e a observar. E o que observo é isto. O mundo fechou portas e abriu, de facto, as janelas do online. Sei: vivemos um tempo único na história. Há um antes e haverá um depois. Não por causa desta pandemia. Mas porque ela é o efeito desencadeador do futuro como o havemos de o conhecer. E porque ele ainda é embrionário podemos, devemos pensá-lo, co-criá-lo. Explico sumariamente.

Sempre li tudo. Romance. Poesia. Ensaio. E policiais, espionagem, banda desenhada. A imprensa e ficção científica. O bom, o mau e o assim-assim. Encontra-se, por vezes, grande pensamento em péssima semântica e sintaxe duvidosa - e vice-versa, o que é muito mais grave pois impressiona o indígena, como diria o tio Eça. Ora, as distopias, em boa ou má literatura, de qualquer género ou proveniência, não são apenas a elaboração do futuro, construídas sobre os nossos passados políticos e sociais somados a fantasias culturais, tecnológicas e científicas assustadoras. São também um indicador e uma moral.

Vivemos em democracia. Não vivemos uma distopia, a menos que estejamos diante da televisão ou do ecrã a ver The Handmaid´s Tale. Ou a reler Orwell. Mas neste exacto momento, estamos também com um pezinho em The Island, o filme, e outro em Foundation, de Asimov, e a respirar os ares de 2084, de Sansal Boualem. Porquê?


E vimos os resultados deste tipo de comércio no palco político. Trump, Bolsonaro, e criaturas afins, são a directa consequência da informação que partilhamos sobre nós, livre e voluntariamente. Os dados são armazenados e tratados e utilizados em cada recomendado para si, funil onde estreitamos o próprio pensamento e consequentes acçõesSeja um livro, um vídeo, um restaurante. Somos o que pensamos. Acrescentaremos agora, hoje e nos próximos sete anos, os dados que faltam. Os de saúde como em The Island. Exactamente o que a China já está a fazer com os residentes de Hubei, desde a geolocalização à temperatura corporal. E nós também, apenas não os estamos ainda a facultar às autoridades - quantos lances de escadas subiste hoje, Guilherme? E os do trabalho. Estamos na génese da nova revolução. Estamos a produzir, voluntaria e involuntariamente informação maciça. Começou a revolução laboral – ripple effect ainda incomensurável. A partir daqui, muda tudo. Se podemos produzir a partir destas pequeninas unidades em que vivemos, porque continuaríamos em estruturas gigantescas de elevadíssimos custos e consumos? E quem seremos, quem poderemos ser neste equilíbrio precário entre a atomização e a super-consciência, o super-cérebro em rede? E como?

Paradoxalmente, talvez o meu fascínio por distopias me afaste do cinismo e do pessimismo. Ao contrário do apregoado não é, nunca foi, o darwinismo social o gerador de grandes e benignas mudanças ao longo da nossa história, foi, sim, gerador de grandes catástrofes, felizmente, auto-circunscritas: inquisição, nazismo, estalinismo... A cooperação conduz a alterações de paradigma de outra natureza, e duradoura, e tem promovido o aumento da escolaridade média, da média de vida, da riqueza per capita, da igualdade de género. O crescendo civilizacional é inversamente proporcional aos vícios de poder dinásticos, mais ou menos nepotistas, autocráticos, narcísicos, mais ou menos corruptos.

Este é o tempo de nos pensarmos de forma global e isso pede-nos responsabilidade pessoal, social, e maturidade política. A democracia, sabemos de cor, é, e continuará a ser o pior regime, mas não há outro melhor.

"O que não me contam, eu escuto atrás das portas."




*frase de Dalton Trevisan

A vida em aberto

Foto de Joana Bourgard


Devemos sonhar novamente com carruagens de comboios,  já que os céus se cansaram de aviões. 
Podemos se quisermos, voltar a deslizar as rodas das malas pelos corredores apertados de um vagão,  alguém na nossa direcção e um tem de ceder, recuar ou avançar, com licença, por favor, desculpe. Gestos e palavras envolvidos no cheiro ácido a linha férrea e o balancé do corpo que começa. Para cá e para lá. É bom que as pernas estejam fortalecidas, ajuda no equilíbrio. O cheiro a linha férrea permite-nos com grande facilidade aceder a uma qualquer memória, a um saudosimo feito de comboios.  

Cheguei finalmente à minha carruagem, abri as portas deslizantes do compartimento com as duas mãos em simultâneo e com curiosidade, estava vazio, por enquanto. Numa viagem de comboio sabemos muito pouco. Não sabemos quanto tempo vamos ficar sozinhos, ou quem nos irá fazer companhia, por exemplo. E que dois exemplos tão determinantes. Já a viagem não é determinante, nem fechada. Está em aberto.
Uma viagem, uma janela, e o mundo lá de fora passa a correr, mil frames por minuto, mil frases por segundos que não se conseguem dizer, apesar do esforço e das tentativas. O corpo continua quieto, apesar do estímulo. A viagem demora-se nestes tempos apressados. As imagens serão sempre a correr, mas o tempo, imagine-se, desacelerou!

É preciso pararmos o tempo para ligarmos Viena a Istambul, ligadas entre si por outro tempo. Estão situadas, por assim descrever, numa coordenada poético-matemática só alcançável para alguns, e sim,  agora também desertas e isoladas como qualquer capital do mundo. Viena e Istambul namoram noutro tempo e agora, mais do que de distância, morrem de saudade. Mas o Expresso do Oriente  continua a existir como sempre existiu para mim,  à distância, numa localização poético -matemática, por assim dizer. 
É uma equação que tento resolver para me consolar em dias de apatia e irratibilidade.

Deixo-me embalar pela percussão da marcha do comboio , lá está - poético-matemática, pela Karenina de Tolstoi, e porque não? É calhamaço suficiente para aguentar uma quarentena ou para me acompanhar na distância que vai de Viena a Istambul, e acalmo-me. O Tolstoi inquieta-me,  mas viro a página. Afinal temos todo o tempo no mundo, ele está parado. Nós parámos e por isso os aviões pararam, as fábricas, as escolas, os restaurantes, os artistas, a produção parou, mas o sol, a lua, os pássaros, as aranhas, os pensamentos, as frases e as imagens por segundo, não pararam. E o comboio, aquele que ainda podemos apanhar está, agora parado, à espera. Vais entrar?

As estações também definem os comboios e não há alívio mais aliviador do que o suspiro demorado e profundo de um comboio a chegar à estação. Há sempre alguém que entra e sai. Há um fim e um começo e isso traduz a simplicidade das coisas difíceis. A viagem ainda assim, continua. Está em aberto.
O comboio tem uma poesia que o avião não tem, mas há que ter tempo - quer para a poesia quer para o comboio, e sobretudo, há que deixar correr o tempo numa viagem em aberto. 

O Expresso do Oriente é o meu ex-libris em viagens demoradas. Pode ser um work in progress, um happenig. A vida em aberto que contrasta com a eficácia e monotonia de um avião - fechado.


24 de março de 2020

JUST DO IT!


Assim tem sido. Just do it!

Um dos problemas da reclusão – só um – é a falta de exercício físico, que faz bem a muita coisa, mas, sobretudo é a melhor lixivia para a alma, uma vez que o álcool está esgotado.

É nestas circunstâncias adversas que tenho subido e descido escadas, as escadas desta PV (propriedade vertical; ainda estou para descobrir porque é que esta coisa da horizontalidade tem que ser para todos!).

E lá me faço ao caminho, digo à estrada, digo às escadas diariamente!

Honigod, Maputo 2020.

E não é que a coisa resulta?

Registado pela máquina infernal que levo no bolso tenho evoluído e dos 26 andares vencidos inicialmente, hoje a média diária é de mais de 40!

Dir-me-ão: como é possível? Com música! Com música do princípio ao fim! 

Como o eco é muito, hoje acho que vou optar pelo Barroco!

23 de março de 2020

.

Querido, comi o carro




querido, comi o carro

A coisa passou-se há algum tempo. Conto sem introdução ou parágrafo. Vendi o carro para pagar a casa, a água, a luz, o seguro de saúde, enfim, para existir com as contas em dia. Porque não basta trabalhar. Muitas vezes não há, de todo, como existir por muito que se trabalhe. Com rigor. Com paixão. Dedicadamente. Nessas alturas, fingimos que somos árvores e, esquecidos de fruto e flor, despojamo-nos das possíveis folhas como se nada fosse, e dos ramos, tudo para preservar a raiz. É a altura de querido, comi o carro. Contudo, o que temos, o pequeno mundo que construímos é todo ele, também, um património afectivo. Amoroso. É tempo. O nosso tempo. Da nossa vida. Então, qual raiz?

Eu gostava do meu carro. Muito. Dizia a mim mesma que era por ter a matrícula com as letras do nome do meu Cão, o melhor do mundo em quatro perfeitíssimas patas, Cão hipérbole de todos os cães havidos e por haver. E talvez fosse, de facto, por isso, por tê-lo comprado depois de o Cão ter morrido e ver sinais da inexistente comunicação entre os mundos em duas letras de matrícula… A saudade inventa estas coisas para nos deixar acompanhados de quem não está. Mas a verdade é que também gosto das minhas chávenas e elas não contactam o além, e dos meus candeeiros, dos tapetes. Tenho apego aos meus pronomes possessivos. E quando me armei em saltimbanco, em cada mudança de casa, felizmente poucas, os caixotes de livros emparedavam-me em desespero de ter de os voltar a arrumar. Os meus livros. Então, quando vendi o meu carro, em vão consolo pensei, também Lucas Pires teve de o fazer, teve de comer o carro, e creio, como eu arrependeu-se de ter contado porque isto é uma coisa que fica no ouvido dos outros.

Os outros mudam quando comemos o carro. Quando pedimos ajuda - ajuda? Ainda que a ajuda seja em forma de assim emprego, trabalho, essa luz a abrir escuros onde a alma se põe e a capacidade de acreditar na competência, no mérito, na excelência. Num segundo, e eu tenho um metro e setenta e um, passei logo a medir um metro e cinquenta e três quando me fizeram o favor de me indicar para algo tão pouco, tão menor, tão longe do que sei fazer. Foi uma experiência reveladora: como nos vêem, porquê. E pedagógica. Aprendi o que não quero ser nem serei para quem confiar em mim o suficiente para me pedir ajuda. Mas também há quem lute por nós, e mesmo que não ganhe, em dias de grande tristeza, dias de não posso mais, de não há como, dias bons para desistir ou morrer, é com o seu fôlego que nos salva. Sem metáforas. Os nossos campeões, heróis particulares e sem reconhecimento, salvam-nos, ainda que nos digam, olha, gostaram muito dos teus textos, mas só estão a meter estagiários. Um metro e setenta e um.

Recuperei o carro, é verdade. Não desisti nem quando tive vontade. Mas envergonha-me muito viver ao lado de gente que agarra o privilégio sem abraçar a responsabilidade. E confunde serviço público com estação de auto-serviço. E outras pérolas de café onde desfiamos os males do mundo com bica cheia ou curta porque são fáceis de apontar e difíceis de curar – difícil, não é impossível: o psicanalista que mais respeito e admiro disse-me: zangue-se! Pois bem, estou zangada: dizem, o livro, poesia, literatura, a imprensa de qualidade são coisa de nicho. Sim, sim, na altura do império também o nosso rei não permitia que as escolas distassem menos de x quilómetros entre si, nas colónias, não fosse o povo aprender a pensar e agir como quem pensa, e em vez de comer o carro, implantasse a república.


Must