30 de abril de 2020

Dito e Feito


Nils Frahm - Said and Done



e a música continua como nós iremos continuar

RoyalBlue



RoyalBlue com o código de cor hexadecimal #4169e1 é uma forma de azul. 
No modelo de cor RGB #4169e1 é um compromisso de 25.49% vermelho, 41.18% verde e 88.24% azul. 
No espaço de cor HSL #4169e1 tem tonalidade 225º, 73% de saturação e 57% de intensidade. 
RoyalBlue tem um comprimento de onda de aproximadamente 470.14nm.

(2) Scary Monsters




Volto aos álbuns da minha vida, agora para vos apresentar o tomo 2. Aqui, a escolha é do álbum que me abriu as portas ao mundo do meu maior herói musical. O disco é Scary Monsters e o seu autor nasceu como David Robert Jones mas ficou para a posteridade como David Bowie.
 
Tinha 13 anos de idade quando Scary Monsters (and Super Creeps), conhecido simplesmente como Scary Monsters, foi editado. Fomos apresentados pelo Luís Filipe Barros, no Rock em Stock, a sua casa de boa memória para onde nos convidava diariamente. Começou por me dar a ouvir o "Ashes to Ashes" e a impressão foi tal que ainda hoje é a minha canção preferida de Bowie. Desde então, permanece por resolver o mistério da identidade do Major Tom, o tal que, vim eu a saber depois, o Ground Control de "Space Oddity" já chamara à base logo depois de o Homem pôr o pé na Lua pela primeira vez. Mas muito mais ficou para além do maravilhamento inicial de "Ashes to Ashes" e do mistério do Major Tom. Ainda hoje sou torturado, para o bem e para o mal, pela frase "I  never done good things, I never done bad things, I never did anything out of the blue". Ainda hoje sinto em mim entranhada a estranheza daquelas vozes japonesas do "It´s No Game", o arrebatamento épico de "Teenage Wildlife" e, no meu quarto de adolescente, espreito em cada visita aos meus pais as pegadas que ficaram da pista de dança solitária em que o "Fashion" o transformou.

Foi por essas alturas que Bowie entrou na minha família. E digo-o em sentido literal: foi então que descobri que nascera no mesmo dia 8 de janeiro da senhora minha mãe (apenas com um ano de diferença), o que fez com que, em todos os dias 8 de janeiro de que me lembro a partir daí, passei a guardar para Bowie - ou para o Major Tom, o Ziggy, o Aladdin Sane, o Thin White Duke ou outra das suas encarnações - o segundo pensamento do dia, assim como o segundo brinde, umas vezes ao almoço outras ao jantar, depois dos que eram destinados à senhora minha mãe. Bowie, como um zeloso irmão mais velho, esteve sempre presente nos anos que se seguiram: foi ao som de "Let´s Dance", de "China Girl" e de "Modern Love" que as minhas saídas noturnas se iniciaram (no Roller Magic, ao Parque Mayer, onde de patins calçados e mão estendida comecei belas amizades com juvenis apreciadoras de Bowie), quase que vou jurar que o Thin White Duke cantarolava ao longe o "Young Americans" quando se deu o primeiro beijo e que ecoava o "Heroes" quando me vieram os primeiros ímpetos de independência, isto depois de "Space Oddity", "The Man Who Sold the World", "Starman", "Life on Mars?" e "Ziggy Stardust" terem reforçado a inabalável certeza de que a minha vocação era a astronomia, como garantira em casa, teria pouco mais de 10 anos, depois de ter visto "2001, Odisseia no Espaço" e "Encontros Imediatos do Terceiro Grau". Pela vida fora continuou a acompanhar-me, não me abandonando nem mesmo na sua morte terrena. Aí, nesse último suspiro da sua existência mundana, ofereceu-nos "Blackstar", o mais belo testamento de sempre. E, na maior catarse coletiva de que me lembro antes do golo de Eder fazer explodir o país inteiro de desenfreada alegria, a sua vida para além da morte foi celebrada numa matiné de domingo no Lux que ficou para a história (quem lá esteve como eu sabe bem da emoção que tomou conta de Santa Apolónia e arredores).
 

Mal me ficaria se, desde o percurso iniciado com Scary Monsters, não prestasse a Bowie a minha privadíssima homenagem. Aconteceu na noite de 20 para 21 de Maio de 2017 quando dobrei o meio século: Bowie, o meu herói de todos os tempos, desceu à Terra e tomou conta do meu corpo, numa forma a meio caminho entre o Ziggy Stardust e o Aladdin Sane. De olhos bem abertos, um azul, outro para o esverdeado, com vestes psicadélicas a combinar com uma cabeleira ruiva e um raio estampado na cara. Nem em sonhos, em todo o futuro que os meus 13 anos traziam consigo enquanto ouvia o Scary Monsters, teria imaginado que, trinta e sete anos depois, me vestiria de Bowie para celebrar as nossas vidas cruzadas. A minha bem mais mortal do que a dele, por sinal.

Passo agora a bola para a Teresa Conceição e o Guilherme Godinho virem aqui contar-nos coisas sobre o álbum, ou álbuns, das suas vidas.

29 de abril de 2020

Melancolia



                                                  Honigod, 21.04.2020.

26 de abril de 2020

(1) The Wall




Fui desafiado para escolher os 10 álbuns da minha vida. Os que mais me marcaram entenda-se, o que tudo diz quanto à subjetividade das escolhas. Não se trata aqui de fazer uma lista dos "melhores" ou sequer dos que mais gostei ou ouvi pela vida fora. Simplesmente, apontar aqueles que, por uma razão ou outra (e haverá algumas até inconfessáveis), mais influenciaram ou condicionaram o meu modo de vida e as minhas seleções musicais (e até mesmo literárias ou cinéfilas). Os meus ressentimentos, raivas e ódios (sempre de estimação). Os meus amores, paixões e companhias. Os meus laços de afinidade, empatia e de pertença. A minha "tribo" ou "tribos".
 
Para o disco n.º 1 não vou inventar porque foi o primeiro a marcar-me até ao tutano: The Wall, dos Pink Floyd, lançado ao público em novembro de 1979. Enfim, soube-se depois que o álbum era mais de Roger Waters do que dos restantes companheiros de banda. Que terá sido até o rastilho para a guerra de egos entre Waters e David Gilmour que então se instalou e que acabou por precipitar a saída do primeiro depois de The Final Cut, o álbum que se seguiu a The Wall, e que foi, aliás, apresentado como um refugo (mas um refugo de primeiríssima qualidade, diga-se) do que não coube neste. Tinha eu 12 anos e o meu pai, que nunca foi doido por música (ao contrário do filho), que não era sequer seguidor dos percursos até então percorridos pela banda, decidiu-se a comprá-lo. Num formato cassete, como era próprio, naqueles tempos, de quem não era colecionador de peças musicais. O "Another Brick in the Wall, Part 2" fazia-se ouvir em todas as estações de radio e a sua mensagem constituía um apelo irresistível para qualquer jovem em idade escolar. Daí até me agarrar com sofreguidão aos traumas de Pink, uma rockstar que funcionava como um alter ego do próprio Waters, e à construção metafórica do muro ("The Wall") que o isolou do mundo, foi um ápice. As canções sucediam-se, ora grandiosas, ora intimistas, ora explosivas, ora operáticas, e eram tão perfeitas no seu encadeamento e tão musicalmente arrebatadoras para quem nunca tinha sido ainda verdadeiramente tocado pela força da música, que, mesmo antes do filme homónimo de Alan Parker, um pré-adolescente como eu se viu, pela primeira vez na vida, dotado de um poder quase sobrenatural (aos seus olhos e ouvidos ingénuos de então) de transformar em imagens um sofrido lamento vocal, um poderoso acorde de guitarra, o ribombar de um tambor, ou, simplesmente, a harmonia, o caos e o apaziguamento sugerido por todos em conjunto. Ao poder das imagens a que a música e letras de The Wall me introduziu seguiu-se, naturalmente, a curiosidade - misto de temor e fascínio - por mundos distópicos como os de Orwell em 1984 ou de Huxley no Admirável Mundo Novo, assim como pelos irreversíveis traumas que uma educação repressiva (na escola ou em casa) podia provocar.

Se era ou não areia a mais para a camioneta de um rapazinho de 12 anos, não o sei avaliar hoje aos olhos de então. Sei, sim, que talvez tenha sido o princípio da primeira relação duradoura e estável que tive fora do meu círculo familiar. Tão estável e duradoura que ainda hoje sobrevive. A da minha relação com a música, mais forte do que nunca. E a da minha dívida de gratidão para com Waters e os Floyd. Certo é que, quarenta anos depois, num tempo em que o Spotify se encarregou de confirmar a certidão de óbito do conceito de "álbum", consigo afirmar, sem exagero algum, que nunca se fez, nem antes nem depois, um concept album como The Wall

E, agora, desafio a Eugénia de Vasconcellos e o Vasco Grilo a virem aqui dizer-nos quais são os 10 álbuns das suas vidas.
 
 
 

ACABOU-SE. Semanário (1-6)



1. Acabou-se a NBA

Era de esperar. Ainda assim tinha a secreta esperança de que a América fosse a América e houvesse uma arma secreta, algum género de invenção que nos permitisse continuar a ver a NBA, agora que os playoffs estavam tão perto. Talvez pudessem distribuir aos fãs marchandising antiviral, máscaras e fatos Hazmat com as cores das equipas. Ou então talvez cometessem a loucura de ignorar o vírus por ser tão unamerican. Mas este tipo de ousadia apenas reservado para os mais altos cargos. A América não é já a América. É apenas uma terra igual às outras, feita de humanidade e dos seus defeitos, e muito parecida com a do filme Contagion do Soderberg. 
Assim, acabaram-se os feitos do Luca Doncic, do grego Giannis e do “Quiet” Leonard, os meus favoritos desta temporada. Sinto falta do jogo da noite, muitas vezes já de madrugada, e do convívio através de #hashtags com fãs noutros fuso horários, uns a acabar o dia, outros a começar. Hábito que me fazia sentir cidadão desta Uber geografia onde vivemos e que é, afinal, a geografia do vírus.
A NBA é a minha novela diária feita de folhetins épicos, dramas, azares, surpresas, series imparáveis de vitórias e de derrotas, uma novela de vencedores e vencidos, de super-homens, como Lebron e o Steph Curry e super-vilões como o Patrick Beverly, e o Draymond Green—embora nunca mais os tenha havido com a vil qualidade do Bill Lambear. E vão-me fazer falta os resumos dos jogos da véspera, logo pela manhã durante o pequeno almoço. Hábito muito saudável e alienante que paulatinamente veio substituir os noticiários da rádio, sempre tão deprimentes, não só pelas notícias repetidas e os sound bites encomendados, mas pela repetição de tiques, convenções e queixas velhas trazidas por anacrónicas vozes que parecem empenhadas em noticiar que tudo continua miserável, triste e neorrealista como dantes; que nada nunca muda nesta terra tão devota da Santa Convenção.
Lá veio um vírus, para mudar de assunto, uma verdadeira má notícia, uma catástrofe que se adivinha ainda maior lá mais para a frente. Mas as vozes continuam no mesmo registo. O tom usado para noticiar a pandemia é o mesmo, tem a mesma urgência e drama, do usado na greve na função pública. A única consolação, ainda que pequena, é que acabou a conversa do futebol e acabaram os carros na estrada, ou seja, baixou consideravelmente a poluição. Bem estávamos precisados de ar puro.

2. Acabou-se o alho

Como é possível que um português, que açambarca dois carrinhos de supermercado, se esqueça do alho?
Deixei a costeletas de borrego a marinar tristes, só com umas ervas e limão. Estava convencido que tinha alho com fartura—compro sempre uma réstia­—mas não tenho nem um dentinho para me consolar. E o verdadeiro drama, muito para além do desconsolo paliativo, é que terei de voltar ao supermercado da esquina, um daqueles baratitos, onde uma funcionária grande, muito vocal e algo ordinária, ainda há dias tossia livre e alarvemente para a atmosfera. Mas tem de ser. As costeletas de borregos já estão perdidas, mas há outra carne no frigorífico a precisar de perfume. Pensar que anda uma mãe a amamentar um borreguinho, depositando nele as mais elevadas espectativas gastronómicas, que o entrega ao cuidado do talhante, que o desmancha até á costeletazinha, para tudo acabar numa desconsolada marinada omissa d’alho.
No Reino Unido finalmente caíram em si e vão começar a quarentena. Tento encontrar consolo no facto de saber que aqueles milhões de almas reclusas como nós, que não usam nem um dentinho de alho, quanto mais com uma cabeça inteira, ainda assim conseguiram uma civilização muito aceitável—embora, como toda a gente sabe, comam mal. Talvez por isso tenham boa escrita, por terem digestões menos demoradas. “Garlic doesn’t agree with my stomach” disse-me um dia um amigo inglês no Pap’Açorda a olhar uma açorda real. Não era só o alho. A cara dele não enganava. O que via no prato parecia-lhe comida vomitada. Um bolo alimentar expelido com nacos de marisco, intenso no cheiro a alho. Eu também o vi assim, pelos olhos dele. Mas comi a açorda dos dois, enquanto ele, ironicamente, pedia um bife. Sem alho. Stinking Rose, é como lá chamavam ao alho. Bifes! Uns Jeckels no que ao tempero diz respeito e uns Hydes quanto toca a mamar whisky, que foi como ele acompanhou o bife. Whisky e cerveja. O vinho também não concordava com ele. Enfim. Concordávamos noutras coisas. Era bom gajo, o bife. Tenho saudades dele. Hoje trocámos mensagens—lembrei-me dele depois do debacle do alho. Está na sua casita no sul de Inglaterra, um velho farol de onde se vêem Turners da janela. Concordamos nisso, em olhar o grande Atlântico.
Agora vou ter de me encher de coragem. Amanhã de manhã aventurar-me-ei pelos lineares assombrados pela mulher que tosse, evitando as gotículas infectas, para chegar às réstias de alho, ensacar uma, voltar a cruzar os lineares, pagar, chegar a casa, queimar a roupa, as luvas e a máscara no bidon que arde no quintal, tomar banho e fazer o resto das carnes com preceito mediterrânico.




3. Acabou-se a lixívia 

Gostava de ter outro título. Talvez acabou-se o mar, ou acabou-se o abraço, ou acabou-se o mundo como o conhecemos—embora nos tempos que correm este seja o mais banal dos títulos. Enfim, qualquer outro assunto mais literário, mas foi mesmo a lixívia que acabou.
As últimas gotas usei-as para desinfectar uma alface. Sabe-se lá que micro-organismos habitavam aqueles refegos folhosos. Era já o fim da embalagem de Neoblanc. Agora tenho de comprar mais. Será que a mulher que tosse já fez o teste?
Gosto de lixívia. Gosto do cheiro. Como gosto do cheiro a gasolina, a acetona e a fumeiro. Gosto de química, de cheiros ligeiramente intoxicantes com um trave cancerígeno.
O nome é romano, Lixivium, água passada por cinzas e coada. Aprendi tudo sobre lixívia  com um cliente espanhol, faz tempo, e escrevi-lhe um anúncio com freiras todas vestidas de branco. Freirinhas virgens, novas. Lembro-me que havia uma madre superior e outros clichés, mas não me lembro do que se dizia. Devia meter milagres e agradecimentos ao Senhor. A minha cabeça só lembra as freirinhas vestidas de branco. E as fantasias a que me entreguei no plateau, enquanto filmávamos as putativas virgens num convento perto de Barcelona.
É bonito, um chão limpo a brilhar e a cheirar a lixívia, como acontecia em casa da minha avó antes de terem chegado os lava-tudo perfumados; é particularmente reconfortante saber que ali, depois de passada a esfregona, não sobrevivem os malévolos vírus coroados que, de tanto vermos ilustrados nos media em 3D, cartoon e foto desfocadas de microscópio electrónico, já imaginamos por todo o lado. Também pelos écrans me apetecia dar uma esfrega de lixívia.
Como muitos de nós, passei os primeiros dias a ver notícias e a percorrer o Twitter, e como muitos de nós agarrei uma neura gigante. Resolvi deixar de ver. Não aguento os wannabe comentadores do Twitter, nem o tom compenetrado e paternalista dos locutores de telejornal: o estamos aqui a fazer o nosso papel imprescindível, que é o de noticiar os gráficos da morte e, já agora, mostrar alguns os políticos moralmente corruptos cujo trabalho é sobretudo aparecer a entregar bilhas de gás de máscara na cara para tapar a vergonha que nela não têm. Também não aguento os anúncios pseudo dramáticos a falar de heróis de máscara, do nobre povo, da nação valente, do vai ficar tudo bem, do vamos vencer este desafio… parece que foram todos escritos pelo mesmo desinspirado redactor, o único que se mantém no seu posto a rimar verbos e banalidades. Esta pandemia não está nada boa para os media, que já antes sofriam de condições preexistentes.
Mas sobretudo deprimem-me os relatos das mortes italianas e espanholas em lares onde se recolheram os mais velhos. Já lá estavam à espera da morte, largados por filhos sem condição (ou paciência) para os ter em casa, afastados da comunidade numa quarentena permanente, impedidos de partilhar com os netos as histórias que protagonizaram, credores de justa retribuição pelas vidas que entregaram, mas abandonados sem valência, a não ser para os que fazem deste mórbido negócio hoteleiro ganha pão. Espero que por cá não aconteça nada tão cruel.
E nos conventos, haverá COVID? Não ouvi nenhuma notícia. Será que não há? E se não houver, será da lixívia ou será o Senhor?



4. Acabou-se o sossego

As traseiras da minha casa foram abençoadas com um quintal gigante. Chama-se Serra de Sintra. Durante anos passeei o cão—que agora é cadela, chama-se Maria José—pelos caminhos de terra nos meio das árvores. A cadela atrás dos cheiros, livre, eu atrás dos pensamentos, enredado neles. Fosse Inverno, quando os caminhos e os trilhos estão cheios de lama e as árvores pingam constantemente, fosse Primavera, quando neles brotam ervas cheias de viço, raramente aparecia alma viva. Todas as que por lá andavam eram de outra qualidade. Hoje, de tão calcados estão os trilhos, nem ervas nem assombrações.
Nos primeiros dias da quarentena, antes dela ser decretada por édito estatal, quando os cidadãos ainda iam à praia, ao calçadão e à esplanada, imbuídos daquele optimismo de avestruz—se eu não vir o vírus, o vírus também não me vê—a paz nos bosques era maior. O ar parecia mais limpo, o silêncio parecia mais nítido, o verde mais fresco e as sombras mais sombrias. Nos bosques só eu e a Maria José. Morresse ali acometido de síncope e ninguém me encontraria. Ficaria entregue à natureza e aos seus processos, acompanhado pela cadela que faria guarda e honras ao cadáver, contando aos outros bichos quem eu era e como desperdiçara a minha vida em passeios; pelo menos até chegar a hora da ração. Tudo isto imaginei na sombria paz dos bosques, um velório em forma de fábula com protagonistas locais.
Mas depois o decreto proibiu o convívio, e a GNR e a polícia tomaram conta das praias e dos passeios, e a neura doméstica começou a aumentar, e o cidadão resolveu passear o cão no meu quintal, onde a autoridade não chega—coisa que nunca antes tinha feito. Acabou-se o sossego. O meu e o da Maria José, que certo dia da semana passada foi surpreendida e atacada por uma outra cadela, grande e malcriada, porventura uma cadela da linha, e não voltou a ser a mesma. Agora desconfia de todos os cães com que se cruza e tenta defender-se, preventivamente, atacando. E eu tenho que levá-la pela trela, para evitar que ela, que tem mais de cinquenta quilos, coma um. Não seria um espetáculo bonito.
Claro que a serra não é minha, nem os caminhos de terra, mesmo que por vezes tenha a veleidade de, entredentes, invocar usucapião. E isso eu explico à cadela, quando ela também o invoca entre caninos do tamanho de dentes de tubarão. E aconselho-a a ter paciência, explicando-lhe que o facto de haver estranhos a passear em caminhos que até então desconheciam, não lhe dá a ela direito à irritação. E ralho, quando ela rosna intolerante aos cães franceses e brasileiros de exposição, porque não esse é o género de educação que ela recebeu em casa, nem o género de conversa que alguma vez tenha ouvido à mesa, ao jantar; até porque é um cão de rua e não come à mesa. E mais acrescento que os cães deles têm finalmente a sorte de, pela primeira vez, correrem livres pela serra, e esse facto devia deixá-la senão contente pelo menos solidária.
Mas a cadela, cagou. Para ela, como para mim, acabou-se o sossego.

5. Acabou-se a roupa interior

Confesso que nunca percebi a máquina da roupa. A da loiça sim, sei como a utilizar, mas a da roupa é um mistério. Não percebo os símbolos, nem os programas. E agora não tenho cuecas lavadas.
Duas alternativas se me apresentam: ou aprendo os mistérios da máquina de lavar ou tento comprar online. Obviamente escolho a alternativa mais fácil.
Escrevo cuecas no motor de busca e perco-me. “Cuecas | Primavera Verão 2020 – Oysho Portugal” diz a primeira das entradas. Abro. Maravilha. Dezenas de corpos em lingerie, corpos magníficos de mulheres novíssimas e perfeitas—segundo padrões anacrónicos do velho homem branco. Laser cut, clássico, cuequinha brasileira, tangas, corte em V. Perco-me, como seria de esperar que me perdesse. Faço scroll. Revelam-se troncos belíssimos de modelo encimados por caras sorrindo eróticos mistérios. Passo uma boa meia-hora na variedade de modelos laser cut. Depois a coisa melhora quando passo à tanga hispter. Maravilha: tanga hispter com detalhes florais, tanga hispter com detalhes geométricos, tanga hispter laser cut. Enfim. Nada do que estava à procura. Ou estava? Ainda assim não desisto. Devia desistir, uma vez que apenas tenho as calças do fato de treino e sinto-me um pouco livre demais. Mas sigo em frente até às cuecas clássicas—as delas, não as minhas: clássicas de renda, clássicas de renda com padrão abstracto, clássicas de renda com folhas, clássicas de renda com cós de tira em tecido acetinado elástico, clássicas com corte em V, de microfibra ou algodão. As coisas que uma pessoa aprende quando não tem o que fazer. É demais. Começo a sentir algum desconforto, de tão bonito que é o catálogo.
Volto aos resultados da busca e abro o segundo da lista. La Redoute. É mais técnico, não tem graça nem charme, só se vê a posta do meio. Desisto, já tenho a minha conta.
Faço uma pesquisa de instruções da máquina de lavar. Encontro. Leio. Aprendo. Vou fazer uma máquina de roupa interior. Acabou-se o voyeurismo.


6. Acabou-se a festa, pá?

Estes 46 anos foram de festa. Desde a primeira manhã, quando impedidos de ir ao liceu fomos todos para a rua andar de bicicleta, que a festa foi contínua. Sendo as primeiras impressões as mais fortes, para mim, que entrava na adolescência, período já de si festivo por conta da explosão hormonal, a característica do regime que perdurou foi a de gazeta, de festa, digamos. E assim vivemos, eu e muitos, ao longo destas décadas que vão para cinco, sempre em festa, interrompendo-a só quando era absolutamente necessário para estudar e trabalhar. A festa era a vida, e o estudo e o trabalho, mesmo que muito, e dedicado, e compenetrado, a interrupção da festa, não o contrário. E é assim que deve ser.
Que sorte teve a minha geração. Para começar, uma revolução onde a palavra de ordem era liberdade, conceito que para uma mente adolescente significava carta branca, tempo e espaço para a festa, para a loucura e irresponsabilidade. Depois da festa da revolução—e dos hippies tardios e dos freaks—veio a ressaca. E uma vez tratada a ressaca, veio o punk e a new wave, e a liberdade tomou a forma de pensamento, arte, moda, noite, dança e sexo. Nova ressaca. E nova festa, desta vez a da liberdade individual, trazida por ventos liberais e por dinheiro a rodos que comprava os brinquedos que o dinheiro sempre compra. Por fim, com a passagem do milénio, chegou de novo a luz impiedosa da madrugada que anuncia o fim da festa e revela o aspecto irremediavelmente esfarrapado dos festejantes. De novo a ressaca, mas desta vez das grandes, por ventura a maior de todas.
E o que acontece no fim da festa? Chegam os puritanos, os prosélitos do costume e os oportunistas, aqueles que não foram convidados ou não quiseram fazer parte da festa; e chegam de dedo em riste, declarativos, normativos, com pulsões ditatoriais: a festa é má, como maus são todos os festejantes, dizem os que nunca foram capazes de galhofa. Acabou a festa, proclamam, desejosos de polícia, de censura, de autoridade e norma. E quem são eles? Hoje, aqui, são aqueles que nunca festejaram a sério a liberdade, ou nunca a entenderam como escolha pessoal. São aqueles que nunca se divertiram e nunca souberam rir. São os fanáticos de cara de pau nos extremos esquerdos e direitos. Uns de cariz religioso, outros de cariz policial. Ambos normativos, mentirosos; ambos virulentos focos de contagio dos que estão ao seu lado, à esquerda e à direita, com o mesmo bichinho totalitário, feitos da mesma farinha. Cada um à sua maneira não desdenhariam o fim da liberdade e, com ele, o fim da festa.
Mas há-de vir outra festa. Não a do costume, essa acabou-se, mas outra. Curemos a ressaca e voltemos à festa. Porque sem festa isto não vale a pena.

Entrou uma brisa pela casa adentro




Entrou uma brisa pela casa adentro. Um raio de sol vindo de um céu de trevas. Já era abril e veio para ficar. Com a mesma brusquidão com que, na entrada do século, quando eram uns ilustres desconhecidos, alguém os anunciou como a banda que vinha salvar o rock do seu toque de finados, agora, quase vinte anos depois, em plena quarentena, quando os julgava mais passado do que presente, contaminaram a casa inteira com o mais solar e livre dos sons que um estado de emergência pode permitir. Deles, cantou Alex Turner, frontman dos arqui-rivais Artic Monkeys, "I just wanted to be one of the Strokes", numa das pérolas do mais recente álbum dos Monkeys. Eu, da escuridão do meu confinamento, digo quase o mesmo, que os queria a viver para sempre em minha casa. Talvez os mais puristas apreciadores dos riffs dos velhos Strokes (tão velhos como o pode ser um rapaz de 41 anos como Julian Casablancas) torçam o nariz à eletrónica ou aos falsetes à Prince, talvez os guardiões da memória e os arquivadores dos clássicos do futuro se queixem que há pop a mais em canções tão luminosas como "The Adults Are Talking", "At The Door" ou "Why Are Sundays So Depressing". Eles que entendam o que quiserem porque eu já não dispenso a companhia de "The New Abnormal", o novíssimo álbum dos Strokes. Ninguém se pode dar ao luxo, muito menos nestes tempos de sombra, de dispensar a luz e leveza das canções com que a voz de Casablancas se atreveu a furar a quarentena.

25 de abril de 2020

Exile on Main St.






O Diogo Leote desafiou-me para escolher os 10 álbuns da minha vida. O desafio foi feito no Facebook mas as confidências fazem-se entre amigos e eu prefiro responder-lhe aqui.
Quem me conhece sabe que teria de começar pelos Stones. Aos 52 anos (ou precisamente por causa deles) ainda acredito que o Mundo se divide entre os que preferem os Stones e os que sucumbem aos mais delicodoces Beatles. E a minha escolha, que nunca chegou a ser hesitação, ficou feita muito lá atrás. Pela mão de um amigo do Liceu Francês (a mãe era bruxa ou pelo menos era o que ele jurava e eu não tinha razões para duvidar) que me foi emprestando, um a um, todos os álbuns da banda. A ousadia havia de ser, bem entendido, devidamente caucionada pelos meus primos mais velhos, heróis da meninice que o tempo aproximou, comprimindo o abismo que eram os 3 ou 4 anos que separam um puto de 13 de um matulão de 17.
A seleção recai sobre um álbum para muitos (não para Keith) improvável. Exile on Main Street é provavelmente o mais bluesy dos álbuns dos Stones. A epopeia da sua concepção e gravação vem descrita na imperdível autobiografia de Richards (todos para o Wook já e em força) e, como é de supor, tem todos os ingredientes de que se faz um álbum de génio: sex, drugs, rock'n roll e outras coisas igualmente pias que aqui não fica bem relatar. Tudo num estúdio improvisado na cave de uma mansão alugada em Villefranche-sur-mer. Corria o ano de 1972.
Para além das faixas que haveriam de ganhar vida própria nas várias compilações e digressões da banda (Tumbling Dice, Happy, Rocks Off, entre outras) duas em particular deram a volta à cabeça de um rapazinho em que já despontava, tímido, um leve buço: Sweet Virginia e Sweet Black Angel. E só agora, 40 anos passados, me dou conta da doce coincidência. O buço, haveria de cortá-lo em Paris, antes de uma soirée inesquecível com o meu avô no Folies Bérgères. Mas essa é outra história.
Ora oiçam.



Livros ou carícias?


Que aventuras nos trazem Stendhal e Conrad, o russo Tchernichevski , o americano Melville ou o inglês D. H. Lawrence?Estes são alguns dos Clássicos Guerra e Paz, a colecção mais sólida, mais rica desta editora. Não é sequer uma colecção, por ser mais do que uma colecção, por ser uma caverna de Ali Babá em que cada livro é um tesouro. Esta colecção está, agora, neste tempo de confinamento, a bater-lhe à porta.Faça-se ao mar com Lord Jim, mergulhe nesse oceano de sonho, que depressa se converte num mar de breu de culpa, até que no reencontro do paraíso e da inocência esse herói se redime e nós com ele.Vá ao encontro de O Que Fazer, esse romance que marcou os revolucionários russos na viragem do século XIX para o XX. Mesma a alma tão pouco poética de Lenine, que lhe roubou o título para um dos seus livros.Cole-se a Julien Sorel, singular e ambíguo protagonista de O Vermelho e O Negro, e oscile com ele entre as virtudes do seminário e as delícias proibidas do leito de Madame de Rênal.E fuja já dessa cama burguesa, provinciana, direitinho aos braços de Lady Chatterley, num amor selvagem, pletórico, físico, urgente, no mais proibido dos romances, O Amante de Lady Chatterley, em sue pela primeira vez se escreveu a palava interdita, tão bonita de crua e verdadeira com que se dá nome aos actos do amor.E volte outra vez aos perigos do oceano imenso, e enfrente esse Adamastor, que é a baleia branca a que Herman Melville chamou Moby-Dick. Nesse infinito de mar, céu, vento e noite, o ódio, a vingança, a obstinação enchem de som e fúria a natureza e alma humana.Estas são cinco das aventuras que pode encontrar na Feira dos Clássico Guerra e Paz. Há mais quarenta. Leve-os para sua casa – por dois reis de mel coado, não é? São livros e não são livros: são máquinas que nos transportam no tempo, que nos acariciam os sentidos e o espírito. Tocam-nos da cabeça aos pés até mesmo onde está a pensar que um livro não toca.

24 de abril de 2020

Não são livros, são os lírios do campo



Hoje, trago-vos, cinco clássicos das literaturas de língua portuguesa. No caso, a portuguesa e a brasileira.
O que faria eu se estivesse nos sapatos dos leitores da Guerra e Paz? É simples, lia-os todos. Com garantia de divertimento e de que, em todos, encontrarão situações deliciosas. Comecem por Gil Vicente. Já todos leram o Auto da Barca do Inferno, bem sei. Mas quem leu este Pranto de Maria Parda. E quem é essa mulher que vem do século XVO, percorrendo Lisboa como nós, em confinamento, agora não a percorremos? É negra, mestiça? Sabemos só pela sua fala, pela sua voz – e que voz popular, Gil Vicente lhe emprestou! –  que precisa de beber vinho e que nenhuma tasca ou taberna lhe dá vinho fiado. Que difícil era beber vinho em Lisboa. E que riqueza há na voz sedenta de Maria Parda.
E voltem-me pelas alminhas a ler Os Lusíadas – este Os Lusíadas que Helder Guégués anotou estrofe a estrofe, tornando-o mais acessível sem mexer numa vírgula do texto integral. Vejam bem a arrumação do texto central e das anotações em coluna ao lado, sem interferir. Um belo trabalho conjunto de Guégués e do meu designer, o Ilídio Vasco. Tenham lá paciência, mas esta edição contemporânea é de uma beleza e de uma utilidade que mais nos arrastam a ir a correr pelas estrofes eróticas do celebrado canto IX do meu tempo de liceu. Li e voltei a corar até à ponta dos cabelos.
E convido-vos a reflectirem com Camilo sobre O Que Fazem Mulheres. Esta história de um equívoco – só um? – além da trama e exuberância camiliana tem, neste livro um tratamento gráfico único na história da edição portuguesa. Camilo inventou um capítulo que o leitor pode pôr onde quer. A Guerra e Paz fez-lhe a vontade. Camilo escreveu cinco páginas que o leitor não deve ler, pois nós escondemos essas cinco páginas. Não há outro livro assim com um capítulo nómada e um cinco páginas clandestinas. Descubra com os seus próprios olhos.
Os dois livros brasileiros são de Machado de Assis, príncipe da nossa língua e da narrativa romances. As Memórias Póstumas de Brás Cubas, um oásis de ironia cáustica, é talvez o primeiro romance a ser narrado por um morto. Machado antecipou-se largamente a Hollywood e ao maravilhoso Sunset Boulevard de Billy Wilder.
E, por fim, leiam O Alienista e conheçam o Dr. Bacamarte, que casa com Dona Evarista, nem bela, nem gentil, para que lhe dê filhos vigorosos, musculados e com a inteligente vivacidade de um Einstein. Vai dar-se bem? Leiam, mas façam-me um favor, não o convidem a visitar-nos nestes tempos de reclusão. Descubram o que ele fez ao povo de Itaguaí e digam-me se nós merecemos tal sorte.
São cinco livros, por dois tostões de mel coado cada um: correm por eles os nossos olhos como a corça por prado verdejante.

23 de abril de 2020

Dia Mundial do Livro


Dia Mundia do Livro: não deixem o vírus matar Camões

Em defesa do livro: não deixem o vírus matar Camões
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Hoje, Dia Mundial do Livro, autores, editores e livreiros estão em perigo. Tolstói ou Dostoievski, Shakespeare e Camões, Camilo ou Eça vivem, como Portugal, como o mundo, a situação calamitosa que afecta dramaticamente a nossa forma de vida, as pessoas e as empresas. Sim, os grandes romances, os grandes ensaios, os livros de ciência ou de filosofia, tal como os editores e livreiros que são a sua casa, acabam de sofrer um violento abalo. Fragilizados pelas crises económicas de 2008 e de 2011, editores e livreiros são agora, como resultado directo desta pandemia, confrontados com a mais dura ameaça que o livro já experimentou em Portugal. A espada de Dâmocles, que é a insolvência de editores e o fecho definitivo de muitas livrarias, paira sobre as nossas cabeças, sobre a cabeça dos grandes livros e dos grandes autores, o que o empobrecimento salarial dos leitores, já de si uma minoria da população, mais reforça.
E esqueçam os choradinhos e peditório economicista, por mais legítimo que ele seja. Não vos estou a falar só de uma actividade económica. Ao falar do livro, estamos a falar de um sector estratégico para o futuro de Portugal, de um sector fundador para todas as outras actividades económicas. Como as neurociências cada vez mais atestam, o livro, a leitura de livros, é imprescindível para a obtenção e solidificação do conhecimento.
Se o futuro de Portugal passa, como todos acreditamos, pelo conhecimento, pela ciência, pela matemática, pelo avanço tecnológico, então o livro é a pedra basilar desse edifício. É a mais avançada ciência do mapeamento do cérebro humano que o afirma, garantindo que esse livro a que os cientistas se referem não é apenas o livro escolar ou técnico, de pura aprendizagem. São todos os outros livros, a literatura, poesia e romance, o Dom Quixote e As Mil e Uma Noites, Fernando Pessoa e Walt Whitman, que alimentam a inteligência emocional dos leitores, oferecendo-lhes uma cultura e uma experiência que, só pela vida, seria impossível colher e que lhes dá empatia humana, vacinando-os contra autoritarismos e contra a arrogância do imediatismo de tuítes e redes sociais.
O livro – os livros de António Lobo Antunes, de Jorge de Sena, Agustina, Sophia – é vital para conferir a Portugal o conhecimento de que o nosso futuro precisa e é crucial para a expansão do imaginário e da identidade emocional da comunidade que somos, identidade essencial à construção de um desígnio comum. Por alguma razão, afinal, o Dia de Portugal tem como patrono um poeta e a sua obra, denominador comum para os portugueses. Essa escolha não pode, apenas, ser uma flor de retórica. E quem ama a literatura junta-lhe, num gesto ecuménico, as novas gerações de escritores de língua portuguesa, de África, das Américas e da Ásia, vencedores alguns do Prémio Camões, signo do ideal de universalidade a que aspiramos e que nos empolga.
Cartas na mesa: sem o livro, todas as actividades económicas se empobrecerão. Sem o livro, o futuro das nossas ciências e da nossa tecnologia perde competitividade. Se não escolher a defesa vigorosa do livro, Portugal perde voz no concerto das nações. E esse é o Portugal resignado e sem ambição que todos recusamos.
Salvar o livro deve ser, pois, desígnio dos portugueses, dos cidadãos, do Estado, dos sectores do conhecimento – e de todos os sectores económicos, que, com esse salvamento, estarão a proteger-se e a enriquecer-se. O livro tem de merecer um tratamento de excepção. Não deixemos que, com esta água do banho, se deitem fora esses embriões do conhecimento e do imaginário que são os livros, todos os livros.
Há duas acções imperiosas a desenvolver. Uma a montante, restaurando, junto das novas gerações, o hábito da leitura e o tremendo e poderoso prazer que nela se ganha. Cabe ao sistema educativo repensar métodos de atracção e sedução, cabe aos pais a descoberta do poder lúdico do livro para reforço dos laços afectivos familiares. Cabe ao sistema educativo reparar a catástrofe de tantas opções facilitistas que afastaram as novas gerações do livro. Essa é uma acção a médio e longo prazo.
Mas para que ela possa ser bem-sucedida há uma acção imediata, a jusante, que tem de ser já concretizada: é preciso salvar as edições d’Os Lusíadas, de Hamlet, d’O Principezinho, de Amor de Perdição, que estão nas estantes. É preciso salvar os editores e livreiros portugueses, única forma de garantir a preservação do livro. Salvando-os, salvam-se milhares de autores, de tradutores, de revisores, de tipografias. E salva-se a diversidade, liberdade e independência do livro, contra hegemonias privadas ou estatais indesejáveis.
Consciente de que para tempos excepcionais são necessárias medidas excepcionais, há acções urgentes que precisamos de fazer como quem faz respiração boca-a-boca em emergência crítica. Dou cinco exemplos:
  1. Injecção de volume de vendas com a criação de um cheque-livro familiar, adoptando esta forma simplificada: permitir que cada contribuinte, após a finalização do IRS, possa ainda, e além das deduções já existentes na lei, fazer a dedução integral de 100 €, contra a apresentação de facturas de compra de livros em livrarias. Esta medida tem a vantagem de deixar na mão dos leitores a decisão de compra dos livros, sem dirigismos e sem desvirtuar regras de concorrência.
  2. Aplicação excepcional ao livro (físico ou digital), após a retoma da actividade, da redução a 0 % do IVA, até 31 de Dezembro de 2020, o que permitiria capitalizar livreiros e editores.
  3. Amplo programa de extensão da Feira do Livro às capitais de distrito, envolvendo as autarquias e com a participação activa de livreiros locais.
  4. Alargamento da Lei do Preço Fixo, de 18 para 24 meses, estabelecendo o percentual de 5 % como desconto máximo a praticar por todos os agentes do mercado durante aquele período, evitando assim perdas irreparáveis na cadeia de valor do livro.
  5. Reforço do papel de diálogo, que é o do livro, no universo de língua portuguesa, dando Portugal o primeiro passo ao propor, no seio da CPLP e por período a estudar, a suspensão dos direitos alfandegários aplicados à importação de livros, defendendo a sua livre circulação entre Estados da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
Estas são acções fortes e necessárias para garantir que as novas gerações, com as ferramentas que só o livro e a leitura lhes põem nas mãos, dominem o pensamento e a linguagem, criando a ciência, o saber, a beleza, os valores e a democracia que farão de Portugal um país com futuro. É esta a missão a que todos os autores, editores e livreiros querem entregar-se. Vamos salvar Camões, Eça, Hemingway, Kant, Wittgenstein, Virginia Woolf ou Clarice Lispector do vírus fatal. Salvando-os, projectamos Portugal para um caminho de conhecimento, ciência e riqueza emocional. Hoje, dia 23 de Abril de 2020, Dia Mundial do Livro, não deixem o vírus matar Camões.

21 de abril de 2020

Água quente para o banho

Gilot
Françoise Gilot elle même. E num desenho de Picasso

Tivesse eu podido roubar uma das nove mulheres de Picasso e raptaria, com o ardor de um
Rómulo, Françoise Gilot. Não só pela doçura do seu redondo talento de pintora, mas também
pela bela cabeça morena, comandada pela arguta simetria das maçãs do rosto a que a velhice
daria, depois, proeminência não destituída de ternura. E nem sequer falei do seu peito comovente
que negava, distraído, a lei da gravidade.
Foi esse aroma flutuante que chegou à mesa a que presidia Pablo Picasso. O restaurante era o
Le Catalan, 25 rue des Grands Augustins, margem esquerda do Sena, reinava em Paris a besta
nazi de 1943. Françoise tinha 21 anos e jantava com outra amiga pintora e o actor Alain Cluny.
Picasso conhecia-o e logo veio, prato de cerejas na mão, sentar-se à mesa deles. (Quem, podendo,
não andaria sempre com um prato de cerejas na mão!)
“O que é que fazes?”, “Sou pintora”, “Boa piada. Uma rapariga como tu jamais podia ser pintora.
” Um ao outro, foi o que disseram. Ou dispararam, que era tempo de guerra. A implicância
provocadora desencadeia, sabe-se, erupções e terramotos. Os 21 anos de Florence adivinharam
nos 61 de Picasso a catástrofe, uma catástrofe que – seu legítimo livre arbítrio – não queria evitar.
E já solicito o encarecido apoio dos leitores: o restaurante, Le Catalan, tem toda a responsabilidade.
Há sítios que rimam com o milagre e a epifania – duas estranhas máscaras que escondem o
apocalipse. À mesa de Picasso sentavam-se a bela Nusch e o lírico Paul Éluard, Dora Maar,
amante e musa que o pincel do andaluz imortalizou como “a mulher que chora”. E foi no Le Catalan
que o poeta parisiense Léon-Paul Fargue tombou nos braços de Picasso, com um inopinado AVC.
Ao Le Catalan viriam, mal a bota nazi perdeu a sola, Dorothea Tanning e o seu Max Ernst, Hans
Bellmer, e mais viriam Cocteau, Paul Valéry, Boris Vian. Ali se inventaria o melhor do existencialismo,
uma balada, um hino, que rezava assim: “Nada mais tenho na existência / do que a essência que me
definiu / porque a existência precede a essência / e por isso o dinheiro me fugiu.”
Do Le Catalan ao estúdio de Picasso foi um fósforo. Ofereceu-lhe a água quente que, nesse tempo
de guerra, o estúdio ainda tinha, para os banhos que quisesse. Françoise batalhava então contra
esse fino entrave da virgindade, que persistia, irrevogável, pela falta dos homens que conhecia,
clandestinos na Resistência. Picasso era invasivo e dominador – beijou-a de surpresa a primeira vez,
e ela, para surpresa dele, beijou-o de volta –, mas Françoise tem dois desenhos autobiográficos,
que traçam com ironia os princípios constitucionais da relação deles, que garantiram a sua feminina
autonomia. A um chamou “Adão forçando Eva a comer a maçã”, ao outro “Não me toques”.
Separado embora, Picasso ainda era casado com Olga Koklova – a lei francesa proibia-lhe o divórcio.
Casamento suspenso, repartira-se por duas mulheres. Primeiro, Marie-Thérèse Walter, jovem, de corpo
solar e saudável, seduzida aos 17 anos; depois, Dora Maar, que, quando soube de Françoise, se cobriu
com o lençol da depressão. Marie-Thérèse procurou Françoise e avisou-a: que não tentasse ocupar o
lugar dela. “Não se inquiete, o lugar que ocupei estava vazio.”
Ninguém ocupara nunca o lugar que Françoise teve na vida de Picasso. Fascinada pelo espírito
lúdico, pela sedutora força física, pela paixão exsudante dele, Françoise tinha vida própria e deixou-o
quando quis e entendeu. E disse-lhe. Picasso respondeu: “Nenhuma mulher deixa um homem como eu.


” Até Picasso se pode enganar. "




Crónica publicada no Jornal de Negócios

20 de abril de 2020

cadernos da confinaMente


20.04.20




Caro G.
Por enquanto está tudo bem, e vamos, pelas calçadas da cidade, assim como faziam os filósofos e os sábios, falando dos nossos gatos e da secreta face do mundo. Tu fortaleceste o gosto de me calar ao amares o meu silencio. Sem a imagem o que são as palavras? Pedras escorregadias no leito de um rio, onde dois não cabem e que nos obrigam a avançar o nariz colado aos pés, sem nada ver do mundo, sem que nada tenha sentido, senão avançar como uma besta. Vejo muito bem onde vou, onde vamos: eis-nos a acreditar no poder da palavra, apanhados no seu jogo, em que o dizer é maravilhoso, mas duro e puro como o exílio, ceifando-nos da vida. A palavra está em nós mesmos, mas estamos fechados dentro dela. As palavras acabadas de secar no papel, só nos resta à nossa volta a solidão. No final , há apenas a morte nas margens do mar. Tudo é vazio. Mas nas cinzas das palavras, sei que ainda escreveremos, como as crianças, com o dedo. Vejo bem que o que nos impele de escrever ou pintar, é o ingénuo desejo de parar o tempo, para recomeçar a vida na nossa solidão. Queremos permanecer através dos signos, transformados nos deuses da nossa imortalidade. O magnifico assunto de durar: uma outra religião. Se não sabemos viver, aprendamos a morrer. A nossa narrativa é como a fé dos simples, o ruído que fazem os vermes é a sua musica mais segura: somos prisioneiros dos signos que fazem a corrente entre os homens. Falamos apenas quando no fundo do nosso silencio e estamos juntos enquanto homens sós.
Mas somos suficientemente sós para ser livres!
A vida é tão pouca coisa, que bem poderíamos retirar-mo-nos para o nosso quarto e aí inventar o mundo. Repetimos sem fim os mesmos signos com imagens novas. Pois sim, gostamos o suficiente de viver, encontramos nisso alguma felicidade, reinventemos então o prazer de escrever e pintar, num quarto tranquilo. É a nossa ultima vaidade. Como se o único amor possível fosse o amor de uma ausência! Diz-se que a peste está em todo o lado: cuida bem de ti!
Outrora nunca te teria dito isto tudo.
                                                                


Desenho de Ana Marchand

Carta de ANTONIO BROCARDO a GIORGIONE em 1510

19 de abril de 2020

Gastrópodes vs. Lamelibrânquios

Fotografia gamada à Renascença, com o devido crédito bem visível, de um caso gastropoidal


De um modo geral, são moluscos, mas defendem-se das ameaças de duas maneiras muito distintas.
Os lamelibrânquios, conhecidos popularmente por bivalves, estão sempre em casa, de preferência fechadinhos e só abrem a porta para se alimentarem. A sua vida social é miserável - nunca se viu uma ameijoa cumprimentar um berbigão e muito menos ensaiar um acometimento amoroso. Solitários, parecem ter uma vida desgraçada. Toda a aprendizagem que possam ter em vida é misteriosa, uma vez que o sistema sensorial que os devia ligar ao mundo é inexistente. Ao Sol estragam-se, e nem para comer prestam.
Já os gastrópodes, como o caracol, andam pelas ruas. Sendo igualmente moluscos arranjaram um tipo de defesa muito mais inteligente: transportam consigo o material que os protegerá da ameaça. E assim podem deslocar-se, normalmente exasperadamente devagar, podendo confortar aqueles que necessitam do seu conforto. Não se veja, porém aqui, alguma atividade reprodutiva especial - na maioria dos casos são hermafroditas (ou será hermafroditos?), apesar de terem à sua disposição outros e outras da mesma espécie. Sobretudo, têm vagar para isso.
Ambos - lamelibrânquios e gastrópodes são do período câmbrico, o que quer dizer que têm muita experiência acumulada. Os primeiros, sabem que saindo da concha estão tramados; os segundos, sabem que tirando a concha, tramados estão.
Eis um bom tema para começar um debate: preferis ser gastrópode ou lamelibrânquio? 
Esta, sim, é uma questão dos nossos tempos.

Os intocáveis

Esta Bica Curta foi servida no CM no dia 9 de Abril, ainda eu era novo
karina
Os intocáveis
Eram sete adolescentes e faziam roda no meio da minha rua. Estavam a dois metros de distância uns dos outros. Traziam no corpo a exuberância, riso e doce desprendimento juvenis. Mas não se tocavam. E eu pergunto: voltaremos a tocar-nos? Voltará a confiança de um forte aperto de mão? E a gárrula entrega de um abraço, corpo a corpo? O beijo, santos Deus, como viveremos sem beijos na face, sem lábios contra lábios, sem a aventurosa incursão da língua?
Adivinham-se relações humanas higienizadas, triunfo de um puritanismo “não me toques”, que desconfia da pele, do toque humano. Seria terrível vivermos numa humanidade de intocáveis.

Elogio do Pecado



Esta Bica Curta foi servida no CM no dia 8 de Abril, há meia eternidade, portanto
margot
























Elogio do pecado
Peço perdão: estou farto de virtude. No Sermão da Montanha, Cristo chamou aos perseguidos
e injuriados o sal da terra. Pois eu, que não sou digno de lhe tocar a fímbria do manto, 
proclamo que o pecado é o sal da vida. O confinamento rói a alegria da rua, o gosto 
do consumo. Apetece-me ir comprar o kamasutra à livraria do bairro, beber dez bicas curtas 
no café da esquina, e que venha a Primavera, os jacarandás, as saias curtas das raparigas.
O abominável vírus é moralista até à quinta casa, chato como a potassa. Prende-nos o 
corpo para nos matar o espírito. Morra o vírus. Que o pecado nos devolva a liberdade do 
corpo e do espírito.

Deixe a poeira assentar

Nunca tinha trazido uma das minhas Bicas Curtas ao Escrever é Triste. Aqui está a primeira.
Esta Bica Curta foi servida no CM no dia 7 de Abril, há uma eternidade, portanto
marx
Deixe a poeira assentar
Não fora o confinamento, teríamos hoje um Marx a roçar o traseiro em cada esquina, tantos são os exaltados anúncios da morte do capitalismo. A espirrar poeira revolucionária, os neo-reaccionários anunciam um mundo novo que é só a negação irracional do melhor do século: o crescimento económico que tirou milhares de milhões de humanos da miséria.
Vem aí, sim, o mundo novo. Que seja melhor: com mais instituições mundiais e menos soberania nacional na saúde e na ciência. Com mais cultura e beleza, mais espírito. Com liberdade para a iniciativa individual e milhões de empresas. Com mais comércio, esse feijão com arroz que gera a paz.

Must