31 de maio de 2020

ficheiros inacessiveis



em tudo há uma fissura.
é por onde entra a luz






imagem Ana Marchand
palavras de Leonard Cohen

27 de maio de 2020

A Nostalgia do Esterco


E outros pensamentos enquanto via o “The Deuce”


“Vocês, cabrões, divertiram-se tanto que a culpa do mundo estar como está é da vossa geração.”
Ela se calhar tem razão. Mas que raio havíamos de fazer, depois de anos de miséria, ou frugalidade na melhor das hipóteses, de memórias de guerras e holocaustos, de décadas de hipócritas morais que sancionavam vícios privados ao lado de beatas virtudes públicas?
O que havíamos de fazer quando, por momentos no pós guerra, o estado social, a redistribuição e o acesso à educação abriram as portas das cercas sociais que nos arrebanhavam—para sempre, diziam os mais velhos—e acreditámos tudo ser possível? E tudo era o dinheiro, a arte, o sexo, a liberdade e o individualismo; e com o individualismo, a propriedade e o arbítrio; e a soberania sobre a mais básica das nossas possessões, o corpo. Fodemos tudo? Não sei. Não sequer sei se fomos nós. Fodemos a nossa saúde, isso sei. O resto fodeu-se por si. Nós apenas elevamos o individualismo a valor primordial, ao contrário dos modernos, que o estipulam como direito inalienável e escrito na pedra—mesmo quando se organizam em rebanho ululante, pretensamente colectivista, mas apenas um rebanho de identidades, individualidades paradoxalmente iguais.
O desabafo millennial deu-se enquanto assistíamos ao The Deuce, e era, sobretudo, inveja da festa. Sentimento legítimo e compreensível perante o meu sorridente comentário “As coisas eram mesmo assim”. Mas aquela festa, que começou nos anos 70 e terminou no fim dos 80, uma festa crua, rija, feita de arte, moda, dinheiro, carros, sexo, drogas, funk, disco, punk, new wave, pop e rock n roll, não volta mais. 

"Some of it happened. Some of it didn't happen. Some of it might have happened. But all of it could have happened” disse David Simon, o autor do The Deuce, referindo-se às histórias das três temporadas. A primeira passada em 1970/71, a segunda em 77/78 e a terceira em 84/85. As histórias são sobretudo personagens, personagens que fluem, slice of life. Não há um enredo, definido canonicamente como um personagem e uma situação por resolver. Há apenas o Deuce, aquele pedaço da rua 42 outrora porco, decadente e vibrante. Ou seja, há muitos enredos.
David Simon é um dos dotados. Escreveu o The Wire, Treme, The Deuce e a belíssima adaptação do Plot Against America do P. Roth. O homem foi jornalista e depois argumentista. Sempre escritor. O formato ficção, que adoptou, é do melhor realismo que já vi escrito e filmado. Os temas são da vida na cidade, aqueles que o jornalismo já não trata, porque não pode, porque se tornou irrelevante.
"I've become increasingly cynical about the ability of daily journalism to effect any kind of meaningful change. I was pretty dubious about it when I was a journalist, but now I think it's remarkably ineffectual" diz Simon em 2004, quando se deu conta de que o jornalismo havia abdicado da sua função de olhar o mundo, as esquinas e as ruas.
Hoje, o jornalismo está ainda mais longe das esquinas. É ficção mal escrita, entretenimento pobre, sobretudo encomendado, ou então filme de catástrofe, quando a natureza ajuda a produção; mas no dia-a-dia, mesmo durante a catástrofe, apenas caixa de ressonância de interesses que o manipulam e alimentam. Valha-nos a ficção, que é quase tudo o que nos resta para entender o que se passa.

Na 3ª temporada do The Deuce, a grande festa—e a estupefação, e o crime e as doenças do excesso que inevitavelmente com ela partilham o ecossistema—acaba em tragédia: o Deuce é limpo. Nascem escritórios, hotéis, apartamentos caros, ruas limpas cruzadas por diligentes funcionários; nasce o tempo que hoje vamos vendo acabar. As putas são varridas para longe, os chulos tornam-se irrelevantes com o advento dos pagers e da electrónica, a indústria pornográfica metamorfoseia-se e foge para oeste, os protagonistas do lugar morrem de sida, suicidam-se, são assassinados ou, o que é mais trágico depois de anos de enérgicas e vibrantes meias vidas noturnas, envelhecem e decaem em memórias. Outros, longe da história, tornam-se protagonistas da gula pós histórica, tomam conta do lugar e enchem-se. E nós, os que pela segunda vez nas nossas vidas assistimos àquilo, agora em forma de ficção, entristecemos com o fim; estranhamente nostálgicos da porcaria, do crime, do excesso, das drogas, das doenças, da violência, dos nossos Deuces, e da imensa vontade de viver, fazer, mudar e criar que todo aquele esterco em nós estimulava.


26 de maio de 2020

Dois cêntimos de infância

Gosto muito deste texto – também tenho direito a gostar mais de um ou outro dos meus textos. Neste, visito o que já é só memória, congelada recordação. Tudo, a casa, o bairro, as coisas e os lugares da minha infância, soprou-os o vento da História. Mesmo os rostos, amigos ou hostis, dispersou-os em diáspora e solidão um inclemente ciclone tropical.


Num ápice, o filme salta da eufórica multidão de um rodeo para o silêncio da vasta pradaria que uma desgarrada árvore não chega a interromper. Assim começa “Lusty Men”, de Nicholas Ray.

Robert Mitchum é um cow-boy que vive da espúria arte dos rodeos. Doma cavalos, laça bezerros e monta touros. Nos intervalos, mulheres. Nessa tarde que parecia ser de glória conhece os cornos do infortúnio. Entrou na arena de corpo vaidoso e resplandecente camisa branca. Quando, no final da curta cena, o voltamos a ver, o corpo cansado já arrasta uma perna coxa. É um aleijado num mundo que os nega e rejeita.

Um minuto de filme, o tempo da glória. Abruptamente, da multidão, dos altifalantes do estádio, das incontidas ovações, Nicholas Ray tira-nos e atira-nos para uma paisagem imensa e vazia. Um silêncio de poeira, grilos e cigarras, um consumido resto de Verão, seco e estéril. Vemos o mesmo Mitchum que é já outro Mitchum. Caminha em direcção a uma casa abandonada.

Há, entre o homem oscilante e a casa decrépita, uma antiga familiaridade. Os passos de Mitchum são os passos envergonhados de quem, vencido, regressa a casa. Um cadeado ferrugento fecha o portão da cerca, já Mitchum sobe os degraus do alpendre e empurra a porta que não cede. Este coxo Ulisses, que nem a desculpa de uma Penélope tem, volta-se e sabemos pelos admiráveis e brandos olhos dele o bem e a dor, a dor e o bem, que lhe faz contemplar a interminável pradaria.

Dá a volta à casa e, de repente, pára. Pára porque um fragmento, esplêndido fragmento do passado, lhe iluminou as memórias. Afasta com o pé um esquálido arbusto e, como só um miúdo sabe ser clandestino, rasteja para debaixo da estrutura em que assenta a casa. Lá por baixo, no sujo e mágico pó do tempo, as mãos tacteiam um tesouro: a revista de quadradinhos, a criancice de um revólver inútil, uma velha bolsa de tabaco onde em miúdo guardava moedas. Encontra dois cêntimos, tantos anos depois.

Dois cêntimos de infância podem ser a infância toda, intacta. Procuro no bolso os meus dois cêntimos e falo por mim: não tenho a sorte de Mitchum. Não voltarei a essa intacta infância. Não sujarei a camisa branca rastejando para baixo da casa dos meus pais. Não voltará às minhas mãos o trémulo revólver de um Natal angolano.

Criado, eu e um milhão de portugueses, na casa errada da História, não tenho lugar a que possa regressar e dizer, como Mitchum, “quase nada mudou na casa” ou “dormi neste quarto”. Fez 59 anos este 4 de Fevereiro de 2020: outros homens saíram debaixo do que nem eram casas para me ensinar que a minha casa não era a minha casa. Uma espessa camada de História, de gerações inocentes em busca da sua liberdade, sepultou os segredos que escondi na casa dos meus pais. Não se rasteja para tão fundo. Aos coxos da História não se dá o consolo de dois cêntimos de infância.

25 de maio de 2020

O horror do humano ao humano





realmotsenses
O Império dos Sentidos, Nagisa Oshima

Se o erotismo é uma forma de aristocracia, então Anatole Dauman é um príncipe da Renascença. Há três décadas entrevistei-o no Expresso, o jornal que durante mais décadas teve a paciência de me aturar, quatro em intermitência.

Dauman fora o prestigiado produtor de “Hiroshima, mon amour” de Alain Resnais, da perturbadora “Mouchette” de Robert Bresson, do sexuado “Masculin, Féminin” de Godard, das “Asas do Desejo” do sorumbático Wenders, para ir a jogo só com ases.

Conversámos no histórico Avenida Palace. Assentava-lhe bem a nostalgia do cenário. Vestia-se com uma elegância de faubourg Saint-Honoré, segurando um copo de vinho como se fosse um ceptro de imperador. Falava devagar, procurando as palavras por disciplinado amor à retórica e para se consolar com o som do que dizia. Pensei: há seres humanos que têm no narcisismo a maior virtude.

Parte eslavo, parte judeu, francês de cérebro, Dauman era sempre estrangeiro e no fio da navalha. Os filmes que produziu situam-se nos limites de amor e morte que, cúmplices, roçam já pelo crime.

Começo por “Nuit et Brouillard”, de Resnais. A noite e o nevoeiro desse filme, que faz da escuridão humana e das cinzas dela a sua matéria, leva-nos aos campos de concentração, dez anos depois do genocídio. Filma-se a paisagem bucólica de Auschwitz, a rasteira vegetação que cresce, o parvo sol distraindo-se por um fio de estrada: nem gritos, nem sangue, nem as cinzas de um osso ou da carne que já foi um braço, o ansioso seio do amor. Nada, ninguém, diria de forma mais horrenda a inutilidade do crime nazi do que a silenciosa amoralidade da natureza. Os carris sem uso, outrora de nocturno vómito, cães e medo, estão agora cobertos de ervas sopradas pela indolente brisa do Verão. Dizem que a Natureza tem horror ao vazio, mas o que ali se vê é o horror a um humano que a Natureza se obstina a apagar depressa.

Outro filme, de extremo horror do humano ao humano, foi o “Império dos Sentidos”. Dauman pediu ao realizador, o japonês Oshima, uma “tourada de amor”. Com sangue, vermelhíssimos quimonos, uma faca e uma estocada de morte.

Nessa história de ilimitada paixão entre uma criada de hotel e o dono dele, os amantes atacam o corpo um do outro como um exército um território ou o canibal a sua presa: atacam a boca, o sexo, a menstruação, o estrangulável pescoço. “O que sentes?” perguntam. E quando sussurram “não te posso ver sofrer!” é só para ir mais longe, buscar a inenarrável alegria da dor. Nesse filme, que tanto ensinou ao Arcebispo de Braga quando eu o programei na RTP 2, amor rima com morte, sexo com sangue.

Ascese, protestava Dauman, sentado na nobre decadência do Avenida Palace. A ascese de Van Gogh foi a de cortar a própria orelha. A dos amantes do “Império dos Sentidos” culmina na sufocada morte e no corte cerce desse apêndice que num homem é o ramo e os seus frutos.

23 de maio de 2020

Fazer amor por amor de fazer amor


Isabelle, de maruja

É que é um cabrão de um deserto! Eis o que um, e logo outro dos meus amigos, me disse. Falavam do confinamento destes dias, dunas de clausura, deserto de quarto, sala, cozinha, batidíssimo pela fina areia doméstica. Ora, ninguém conheceu o deserto como o conheceu Isabelle Eberhardt.Isabelle tinha a cara desses rapazinhos que a natureza pinta com beleza de menina. Aos dez anos –seis, talvez –, a paixão dessa menina suíça do século XIX já era o deserto. O tutor, talvez pai ilegítimo, ensinou-a a escrever: tanto lhe ensinou matemática, geografia e química, como a aritmética e a geometria dos poetas, de alguns filósofos.

Isabelle só escrevia sobre esse Sáara que nunca vira, mas que a obcecava. Tinha visões do Mahgreb como os nossos pastorinhos de Aljustrel, concelho de Fátima, tiveram visões da Senhora lá do céu. Isabelle lia tudo, correspondia-se com militares e políticos do deserto, escorpiões até, a camuflada víbora-cornuda do deserto argelino. Não se lhe conhecendo bonecas como a boneca sem uma perna que Agustina guardou da infância e um dia me mostrou na sua casa do Gólgota, desta menina sabemos que escreveu, em idade de bonecas, com pseudónimo tão macho com as calças e o casaco que vestia. Igual aos marinheiros de Cronstad, que o miserável escorpião chamado Trotsky assassinaria, fotografou-a de marinheiro vestida um fotógrafo, o mesmo que a levaria, aos vinte anos a finalmente conhecer o deserto. E logo o Sáara se ajoelhou, agarrado às pernas de Isabelle, numa doentia declaração de amor, que é a forma do deserto amar, como sabe quem leu com olhos de ler “O Principezinho”.

Para fúria e ranger de dentes da colónia francesa – e se eu sei como rangem os dentes coloniais – o tão bonito rapazinho que era esta menina de vinte anos vestiu-se de árabe, de homem árabe, albornoz e turbante, e casou com um deles, mergulhando no deserto, em caravanas que se roçavam pelo perigo, pela intriga, pelo golpe de um punhal, tanto ou mais aventureira do que o poeta Rimbaud, traficante de armas e escravos nos desertos etíopes. Aprendeu a língua, converteu-se ao Islão e adoptou o nome de Si Mahmoud Saadi: só como homem podia ter a liberdade das aventuras que vivia com homens, mesmo se fosse, depois, a mulher que nela se escondia a deitar-se e dormir com eles. E tudo os árabes lhe aceitaram, haxixe, álcool, a desregrada vida sexual – fazia amor por amor de fazer amor –, acolhendo-a mesmo na Qadiri, uma irmandade sufi, sem ter de passar pelos habituais ritos iniciáticos.

Temendo que Isabelle, de albornoz e turbante, fosse agora espia e agitadora, as autoridades coloniais francesas encomendaram a sua morte. Atacou-a, estava Janeiro de 1901 exangue, um árabe, com um sabre. Um golpe na cabeça, outro que quase lhe levou um braço, Isabelle sobreviveu. O árabe garantiu no tribunal, e não serei eu a desmenti-lo, que fora Deus a ordenar-lhe o ataque.

Isabelle vagabundeou então por oásis, desertos e montanhas, fez amizade com generais da Legião estrangeira e, rosto afável do colonialismo, quis aproximar militares e o povo árabe. Com malária, talvez sífilis, sem dentes, regressou ao casebre do marido, o árabe da sua vida, na noite em que uma enxurrada, tudo levando à frente, a levou também a ela, para vaguear nesse outro deserto que é a morte. Tinha 27 anos. Encontraram o seu corpo, de cavaleiro árabe vestido, enterrado na lama e nos destroços. Viveu em sete o que em cem anos ninguém vive: a absoluta solidão do deserto, um nomadismo que tem na morte a sua única certeza.


Isabelle de Isabelle e de cavaleiro árabe


Crónica publicada no Jornal de Negócios

21 de maio de 2020

Lânguida




Estava lá desde a primeira vez que a vi, mas só hoje a teve a angústia de se deixar tatuar.

Honigod, Lânguida, Parede. Portugal, 2020.



Cinemateca: três doces sobressaltos

A Cinemateca Portuguesa abriu uma diferente sala de projecção. Desfilam palavras e palavras que falam de imagens. O Nuno Sena convidou-me e eu, que à Cinemateca nada recuso, juntei textos e fiz esta colagem. Parece quase novinha em folha.

Cinemateca: o meu jantar de despedida, com o Cintra Ferreira nos seus sonhos, o João Bénard e eu em ameno jogo de mãos, o José Manuel Costa virado a esquerda


No princípio não era só o Verbo. Era o Verbo e era a Lata em que se enrolava, como a coleante víbora do paraíso, o nitrato ou acetato do filme. Naquele tempo, em verdade, verdade vos digo, a Lata era o Pão de que se alimentavam as nossas descuidadas bocas. No princípio, nesse verdadeiro Génesis, que foi o nascimento da Cinemateca Portuguesa – rabinato e papado que me perdoem –, a Lata, a sagrada Lata fazia o papel do Pai Celestial que provê aos biquinhos das aves do céu e faz crescer os lírios do campo. A Lata era o Verbo, a sala de cinema o seu templo.

Lembro-me de ter ouvido, não sei se há dias, se há vinte anos, uma professora com um decote deleuziano a falar da sala de cinema, espaço e tempo e coisa e tal. O decote cerzia a sala toda em rizomas, suspensão e movimento. Deixo-me morrer devagarinho nesse decote desconstrutivista e, já de olhos fechados, recordo três doces sobressaltos épicos da minha pequena vida de programador de cinemateca.

Um espectro que assombra a humanidade

De repente, com a boca a saber-me a madalenas, lembro-me do Grande Auditório da Gulbenkian na noite em que, mil e duzentas pessoas a transbordar das cadeiras, balcão e plateia em overbooking, o João Bénard subiu ao palco para apresentar, em sessão dupla, o Nosferatu de Murnau e o Nosferatu de Herzog.

Nosferatus, o de Herzog, à esquerda; o de Murnau, à direita

Era a Cinemateca transplantada para a Gulbenkian e parecia o costume, uma sala contente de o ver e ouvir, à espera de imagens e de movimento. Veio o escuro e veio a avassaladora mudez do filme de Murnau, num tempo em que as cinematecas ainda projectavam filmes mudos sem música. A surpresa do total silêncio para uma plateia sem hábitos desse cinema, sem o hábito dos gestos desmesurados de Max Schreck o mais nosferatu, o mais vampiro que um actor algum dia se deixou filmar, fez a sala tossir, pigarrear.

Normalmente, abafados pela banda sonora, no cinema não nos ouvimos. Ali, a sala ouvia-se: mexer o rabo na cadeira ouvia-se, engolir ouvia-se, bater as pestanas também. E a sala, nervosa de se ouvir, frente a um ecrã de sombras, medo e silêncio, começou a rir-se. Foram os primeiros vinte minutos de cinema mudo mais memoráveis, caóticos e irrespeitosos de que me lembro: até que o filme de Murnau, sinfonia silenciosa, raptou os risos, as gargantas e os catarros, os rabos inquietos e, dos anos 80 em que estavam, levou os espectadores para os anos 20.

Nada se compara à experiência que é o espectáculo de uma sala a render-se a um filme, uma sala a descobrir o sublime em gestos que, sem a confiança da entrega, seriam ridículos, mil e duzentas pessoas desconhecidas, odiosamente diferentes, com o sangue gelado pela nocturna silhueta de um vampiro que só pode ser vencido pela gloriosa luz da aurora. Uma sala e é a humanidade toda junta, irmanada, no canto escuro, esconjurando os mais assombrosos espectros.

Tinham mães que os amavam

E saio da Gulbenkian. Chama-me à sala da Cinemateca, Luís de Pina, que por ser dela director era meu director também. Chego e vejo que a calva e resplandecente cabeça de Luís de Pina paira sobre um tormentoso mar punk.

Já voltaremos à sua cabeça. Antes, deixo-vos com uma pérola de filosofia social: desiludam-se os proactivos, não cria comoções sociais quem quer e, às vezes, nem quem pode.

O João Bénard concebera um megalómano Ciclo do Cinema Musical. Sonhávamos com plateias a cantar e dançar o Singin’ in the Rain. Entre as obras-primas escolhidas para ovação e aclamação, o João deixou escorregar um filme mais recente, piscadela de olho a uma minoria juvenil, que se vestia de negro e primava pelo brilho metálico.


The Great Rock ‘n’ Roll Swindle (Julien Temple, 1980)

Era o The Great Rock ‘n’ Roll Swindle e foi programado para a então única sala da Barata Salgueiro, de uns compostinhos 250 lugares. O que aconteceu foi tudo menos composto. O filme era o dos alucinantes Sex Pistols de que faziam parte o malcriadíssimo e mal-cheiroso Johnny Rotten e o negramente lendário Sid Vicious.

De repente, duas da tarde no arabizante palacete da Cinemateca, da rua emergem vagas também malcriadíssimas e mal-cheirosas. Onda a onda, iam-se acastelando miúdos e miúdas de furiosos cabelos espetados, farpas negras ou de cores néon, mil brincos a rasgar orelhas. Vestiam de negro, um negro que de luto nada tinha.

Comiam pastéis de bacalhau, arroz que a mãe de algum fizera (tinham mães que os amavam, claro), e bebiam litrosas de tinto. Punks. Estávamos, até à rua, inundados de punks. Já tínhamos visto meia-dúzia. Descobríamos que eram um exército e não cabiam no cinema.

A Cinemateca não tinha telhados de vidros, mas eram de vidro as portas da sala. A pressão das botas negras da infantaria punk fez-se sentir. O nosso porteiro teria pouco mais de metro e meio. A ele podia eu gabar-me, mas não muito, da minha altura; voluntariei-me para parlamentar à massa ululante. Observaram-me com curiosidade entomológica: um coro de arrotos e outros flatos fez-me recuar.

Com o seu amável corpanzil de Robert Mitchum, surgiu o Luís de Pina. Olhar e palavras doces, apelou à compreensão ciclónica dos punks portugueses. A um ligeiro movimento de alívio e aparente conciliação seguiram-se ultrajantes manifestações de alegria que compreendiam homéricas cuspidelas e – volto a ver aqui a calva cabeça – uma escura bota a cruzar os ares, visando o meu director. Não sei o que é que eles respiravam, mas os vidros ficaram aflitos e embaciados e o da bilheteira estalou com estrondo. A alegria punk é assim, física, corporal, sem dualismos cartesianos: o corpo é a alma. Chegou a polícia, o sossego do cassetete.

As primeiras imagens do filme mandaram a sala ao chão. O que lá dentro se berrou, lá dentro ficará para sempre, e o triunfo da escatologia que se seguiu teve de ser lavado durante uma semana. Sim, era o público entregar-se, espontâneo, a um filme! Não há doutor nem engenheiro social que invente uma comoção daquelas.

Ave-maria cheia de graça

E volto ao decote deleuziano. Sai dele, como a língua do Espírito Santo, Jean-Luc Godard, exemplo supremo da alta costura francesa. Filmou, da Virgem Maria, uma estranha anunciação. Chamou-lhe Je vous Salue, Marie e não há, no Portugal de 1985, distribuidor que lhe pegue. Pegou-lhe a Cinemateca que o está já a exibir. Entremos na sala.

Je Vous Salue, Marie (Jean-Luc Godard, 1985)

Entrámos e veja-se: o caldo entornou-se. Um jovem católico virou-se para o chefe de polícia e disse-lhe em tom de desgarrada: “Gostava que fizessem isso à sua mãe?” Ó meu amigo, palavras não eram ditas e já o até então polidíssimo agente lhe enfiava uma gravata que, vi eu, fez o ar dos pulmões do jovem bater no tecto da sala.

Tossia ele, tossia toda a velha sala da Cinemateca. Krus Abecassis, lendário presidente da Câmara, prometera escaqueirar tudo se a Cinemateca se atrevesse a exibir o filme. Fomos perguntar ao João Bénard, que era quem mandava em nós, se nos atrevíamos. O João foi claro: “Nessas coisas sou uma senhora séria. Ora, como sabem, senhora séria não tem ouvidos.”

Preparámo-nos para o combate. Se de algum lado estava, a Graça estava do nosso lado. João Bénard era de um catolicismo doce que lhe impregnou o olhar e a escrita toda a vida, logo a ele que, tanto mudando, em nada de essencial algum dia mudou. Sentíamo-nos, por isso, legitimados para passar um filme que mostrava o desejo de gravidez e o bendito ventre cujo fruto talvez fosse Jesus.

Éramos democratas, mas não éramos parvos: armou-se um dispositivo de Aljubarrota. Vigilância da PSP e dois dos nossos projeccionistas, o Grave e o Gigante, tipos que combinavam volume de boxeur com altura de defesa-central, a filtrar entradas no rendilhado portão da rua. Vendiam-se dois bilhetes por pessoa, o que frustrou as encantadoras virgens que quiseram comprar a lotação do cinema.

A sala era um ovo cheio. Gente no chão e no ar uma dúbia excitação, misto de primeira comunhão e noite de núpcias. Fez-se escuro: a volúpia das imagens aflorou a tela e os jovens católicos pularam em ave-marias e salve-rainhas, subindo ao palco a esbracejar contra as sombras blasfemas.

As luzes reacenderam-se iluminando um belo e poético caos. Enquanto nós gritávamos aos jovens Savonarolas que Je vous salue, Marie era a apologia da Imaculada Conceição, um filme sobre o mistério da mulher que, entre tormento e dúvida, aceita uma violenta graça e sobre o homem, José, que se torce de ciúmes, mas por amor confia, os velhos cineclubistas, com danada nostalgia comunista, apontavam à polícia os insurrectos: “É aquele… e aquele.” Era um mundo às avessas: velhos esquerdistas bufavam à polícia e um miúdo, com vozinha de copo de leite, gritava-lhes: “Pides.”

Num arroubo místico, um dos rapazes desmaiou. Ajoelhou-se ao lado dele uma menina de calças de xadrez. Era bonita e parecia que, segurando-lhe a mão, rezava. Com vontade de rezar com ela, ainda pensei: “Vês, meu anjo, como ser virgem é estar disponível!”

Saberia ela que, assim, na sua ajoelhada angústia, rimava com a imagem de Myriem Roussel no filme apóstata de Godard, repetindo prosaica e séculos depois, o poético mistério mariano?

17 de maio de 2020

10. Cona urbi et orbi. Acabou-se





“Obrigado Bruno por ter sido a primeira cona a quem ligaste”, disse a boca linda da Jéssica Athayde no último episódio do talk-show que o Bruno Nogueira a.k.a. Corpo Dormente, fez no Instagram todas as noites desta quarentena. Mais tarde, da varanda de um prédio iluminado com luzes de Natal, um gajo gritou à cidade e ao mundo “Eu gosto e cona”. Quem não gosta, pensei, apenas para mim, sabendo bem tratar-se de uma generalização politicamente incorrecta. O Bruno parecia não ouvir os agradecimentos, ou se os ouviu não reagiu nem disse coisa com coisa, assoberbado pelo banho popular, o cortejo de seguidores na velha realidade sem mediação de écran, ao volante de motas e carros pela marginal, pela A5 e pelas ruas de Lisboa, onde, em pleno Marquês, praça de muitas coroações, uma ambulância do INEM acendeu as luzes e proclamou pelo megafone, “Bruno és o maior”.
Dia 15 foi o último episódio do Corpo Dormente e foi também a coroação de um novo rei da comédia e do entretenimento. Só pode haver um rei. Já foi o Herman, hoje uma espécie de rainha mãe que muito acarinhamos, fazendo votos para que viva nos écrans pelo menos até ser muito velha. Já foi o muito grande RAP, durante um reinado de dez anos; talvez não tanto um rei, mas um regente tão talentoso quanto habilidoso a mover-se nas cortes ao serviço do status quo: as velhas televisões, os velhos políticos, os velhos anunciantes e os velhos intelectuais, enfim a nobreza e o clero do regime.
Dia 15, com parada e aclamação popular pelas ruas da cidade, luzes de Natal nas janelas e cartazes na rua a dizer Cona a bold, com a bênção do Ronaldo e, finalmente, rodeado do seu séquito no Coliseu, o palácio dos espetáculos, o Bruno Nogueira foi entronado com novo soberano da comédia e do entretenimento, perante uma audiência móvel de 170 mil seguidores.
Os lives do Corpo Dormente foram muito bons muitas vezes. Tinham todas as características de um talk show—genérico, convidados regulares do mundo das artes e do entretenimento, product placement, músico residente, anfitrião—mas não era um talk show daqueles farsolas, das televisões; não tinha nada dos tiques, dos clichês e convenções do costume. Todos os tiques eram pessoais, divertidos e sem tabus. Falou-se de tudo, usaram-se todas as palavras que usamos no quotidiano, todo o nosso bonito e bruto vernáculo, viram-se cus e pichas enfeitadas de árvores de Natal e falou-se muito e regularmente de cona. Foi um talk show feito neste tempo e para esta geração, que vive noutro mundo, com outros instrumentos, outro vocabulário e com outra liberdade de expressão possibilitada pela efemeridade do suporte.
Para além do Rei da comédia, é justo referir-se o magnífico elenco de suporte: entre outros, o grande Albano Jerónimo, talentosíssimo actor e senhor de um belíssimo rabo; o simpático Martinha; o Manzarra a fazer de parvo, personagem que lhe assenta como luva; as desbocadas e enérgicas Beatriz Gosta e Inês AP; o Bukowsky do comentário e do humor, João Quadros; e o perfeito sidekick do Bruno, o velho, triste e embaraçoso palhaço pobre chamado Nuno Markl. Todos disseram e fizeram tudo como os malucos, porque nada ficou gravado para memória futura, a não ser na nossa. Agora, acabou-se. Quem não viu, já não vê. Acabou-se, como é do protocolo das coisas boas e pecaminosas: os verões, as sobremesas, as boas garrafas de vinho, os amores e de tudo o que bom.
Há quem não tenha gostado, como é normal. Há quem não goste de vernáculo e, em particular, da palavra cona, o que também é normal. Há mesmo quem não goste de cona, o que também não deixa de ser normal. Mas que ela foi desconfinada, arejada e posta a circular urbi et orbi durante esta quarentena, foi.
Long live the new king of comedy.


9. Acabou-se faz tempo





Há nove semanas à espera que os Alíseos soprem.  Em redor, hoje, como ontem e anteontem, só azul. A minha companhia é repetitiva, as mesmas palavras, os mesmos pensamentos, os mesmos vícios de pensamento, os mesmos silogismos, conclusões, alucinações, o mesmo eu. Não sinto a corrente. Tudo parece igual. Tudo é igual. Há uma corrente, sei-o, mas não o sinto. Não fossem os peixes voadores…
E ainda assim não tenho saudades de quase nada. Nem das rotinas do quotidiano, momentaneamente a balançar suspenso à espera de ventos e correntes, nem do velho passado celebrado ad náusea na velha rádio que, por vício, ligo. Nada me irrita tanto quanto a celebração do antes é que era bom, dos bons velhos tempos, da música da juventude, dos Glory Days que cantava o Bruce Springsteen. Dos portos zarpados faz tempo. Desprezo, como absolutamente reacionários, os programas das emissoras nacionais onde os DJ partilham a sua juventude em forma de banda sonora e memória de televisão; como se uma e outras tivessem algum interesse, fizessem falta; música farsola, que acompanhou roupas farsolas, programas de televisão farsolas que, já então, eram maus. E desprezo a nostalgia política que enche as conversas em rede, promovida por locutores políticos, DJs do sound bite: sound biltres: o socialismo Che Guevariano, o fascismo desenterrado da vala comum e o vampirismo Thatcheriano.
Não entendo a nostalgia, não a sinto. Talvez, do mesmo modo que alguns têm defeitos no centro da fala ou da locomoção, eu tenho um defeito na ligação entre o centro da memória e o da emoção. Pode ser que a identidade de uma pessoa, quando é construída durante a adolescência e juventude, seja  marcada pela banda sonora da época, pelas roupas, penteados e ideias que usou quando era nova; e assim, muitos desses hábitos e gostos anacrónicos se mantenham. Comigo não resulta. Saudades tenho, nostalgia não. Saudades tem-se do que morreu, não do que se desenterra.
Do passado, do meu passado social, só sinto falta do velho Pap’Açorda. Mais agora, que a oferta de restauração é vasta e variada, e quase sempre pretensiosa. Sinto falta do bom gosto dos arranjos florais, do balcão onde me recebiam sem salamaleques nem falsos sorrisos, da cor rosa, dos lustres, do bruaá sempre animado, mas nunca excessivo, dos olás, das costeletas de borrego panadas, do esparregado, das entradas e, como muito bem lembrou o João, da mesa reclusa junto ao balcão, cheia de amigos uma vez por ano, num almoço que durava até às quatro da tarde.
Nada do passado me faz falta. Só o velho Pap’Açorda, com que sonho nesta deriva pelo azul. Se calhar a minha identidade foi construida com costeletas de borrego panadas e bom vinho.

8. Acabou-se o velho capitalismo








Ter certezas no amanhã é conjugar o futuro-mais-no-presente. Imagino um futuro, planto uma ideia, faço um plano e, se tiver sorte, se tiver trabalhado, se os deuses me soprarem ventos favoráveis, chego lá. E, do imaginar ao chegar, atribuo-me a causa. Fui eu. Tudo, ou quase, foi resultado do meu arbítrio. É esta doce ilusão de agência, de livre vontade que faz valer a pena viver.
Criamos fantasias e futuros a que tentamos chegar com a força da vontade, fazendo promessas as nós próprios e aos outros, e, às vezes, chegamos lá. Outras vezes, somos nós que desistimos, outras ainda, quando os astros se desalinham, são as circunstâncias que desistem de nós; e então lembramo-nos de que a incerteza é a natureza do futuro.
Aqui fechado, sei, com alguma probabilidade, quais serão as minhas acções amanhã. Já o mês que vem é mais do que nubloso e o ano que vem apenas sombra. Não consigo lá plantar uma ideia porque não consigo enxergá-lo. O aumento da incerteza é inversamente proporcional à doce ilusão de arbítrio.
Já era difícil antes desta pandemia. De acordo com o IMF e o WUI, a incerteza dos cidadãos em 2018/19 era a mais alta das últimas décadas. Chamavam-lhe incerteza radical. Agora, ao clima, à precaridade, à desigualdade pornográfica, ao esbanjar de recursos, acrescentou-se pandemia e a maior recessão de sempre. Imagine-se 2020/21. Que nome lhe daremos, incerteza terminal?
O mundo mudou muito nos últimos vinte anos. Nós, por cá, nem tanto. Nesta pequena experiência lusa, naturalmente vivemos tentando fazer e pensar o de sempre, confortáveis com hábitos, modelos e ideologias anacrónicas, passados falhados, que hoje requentamos com a espectativa de uma previsibilidade que sabemos (desconfiamos) incapazes de produzir.
Mas o futuro tem vindo a ser produzido e é propriedade das grandes empresas da inteligência das máquinas que, paulatinamente, há vinte anos exploram o maná de dados e recursos comportamentais que circula na internet das pessoas e das coisas. As maiores corporações do mundo dedicam-se hoje ao negócio dos futuros comportamentais, produzindo e vendendo previsibilidade a um mercado sedento de certeza. Até agora, graças à incompreensão que, com a excepção dos sacerdotes do digital, todos nós partilhamos, fizeram-no furtivamente, arrebanhando a informação, iludindo a legislação, escondendo o conhecimento, os algoritmos e os processos. Até agora furtaram-se ao escrutínio dos cidadãos, que não se importam dos presentes que recebem em troco do seu arbítrio.
As últimas décadas demonstraram que a inteligência das máquinas consegue produzir mercados previsíveis. O próximo passo é a produção de sociedades previsíveis, desta vez com o beneplácito dos cidadãos angustiados com a incerteza.
Todo este relambório soa distópico, produto de uma mente sombria, deficitária em vitamina D, depois de tantas semanas fechada em casa a ler o livro The Age of Surveillance Capitalism da Shoshana Zuboff. Mas é um grande livro e é para onde apontam os sinais.
O que me angustia não é estar preso em casa. É estar preso no presente, sem futuro. É pensar que o futuro não nos pertence. Nem a Deus pertence. Mas às empresas da inteligência das máquinas que têm hoje capacidade de empurrar, dirigir e condicionar a sociedade, sem qualquer escrutínio eficaz e democrático.
Enfim. Vou ler o Dom Quixote.



Breve história musical de um rapaz já a caminho de velho


Depois de (1) The Wall, (2) Scary Monsters e (3) Closer, os fundamentos da educação musical do rapaz de 13 anos estavam lançados. Quase tudo o que o rapaz ouviu depois foi herança ou recriação desses três momentos fundadores. E o que veio então depois que ficou para sempre? É isso que o rapaz vos vem aqui apresentar agora: os sete álbuns ilustres sucessores que, para além dos pais instituidores da herança, traz sempre consigo no seu ADN. Do mais velho ao mais novo, entram já de seguida as restantes sete das dez dívidas de gratidão musical da sua vida.  
 

(4) One From The Earth, Tom Waits / Crystal Gayle (1982) – O rapaz só o descobriu na década de 90, tal como o extraordinário filme homónimo (de que é a banda sonora) de Francis Ford Coppola, mas foi bem a tempo de curar as suas dores de amor. Acha o rapaz que não há homem ou mulher com história sentimental que se preze que nunca as tenha tido. O rapaz não foi exceção e foi salvo pelo One From The Earth, no qual procurou consolo quando nada mais lho dava.
 
 
(5) It´ll End In Tears, This Mortal Coil (1984) – Companheiro noturno inseparável do rapaz ao longo de cinco anos de exames durante o Curso de Direito. A licenciatura é tão dele como de Ivo Watts-Russell, dono e responsável da 4AD, que reuniu as bandas e os nomes emblemáticos da editora (Cocteau Twins e Dead Can Dance à cabeça) e mais alguns convidados para montar o projeto This Mortal Coil, com o qual, além deste It´ll End In Tears, fez ainda dois outros maravilhosos álbuns (“Filigree & Shadow” e “Blood”) que também aqui podiam estar. Ainda hoje, quando perguntam ao rapaz que canção levaria para uma ilha deserta, continua a responder “Song To The Siren”, na versão aí cantada pela Elizabeth Fraser.
 
(6) Disintegration, The Cure (1989) – O último grande álbum dos The Cure, a banda que fez do rapaz um rapaz de tribo. Ainda hoje o rapaz não ouviu nenhuma guitarra, ou qualquer outro instrumento, que conseguisse replicar o som que Robert Smith arranca da sua Fender Bass. Depois dos Joy Division, foi com o som sombrio e atmosférico dos Cure e dos Echo & The Bunnymen que o “eu” do rapaz se partiu em dois: a partir daí, foi toda uma vida repartida entre o “mainstream” a que o convívio social e as saídas noturnas o obrigavam e o sentimento de pertença a uma “tribo” definida por afinidades musicais quase do domínio da clandestinidade. Os Cure acabaram por vir em seu socorro com canções que, com o tempo, se tornaram êxitos “mainstream” de pistas de dança. Está aqui Disintegration como podiam estar outros anteriores como “Seventeen Seconds”, “Head On The Door” ou “Kiss Me, Kiss Me Kiss Me”: os Cure foram (ainda são), sobretudo, uma banda de grandes canções, mais do que de grandes álbuns.



 
(9) Kid A, Radiohead (2001) – Um dia, o rapaz há-de aqui vir contar a história de como assistiu em direto, nos primeiros meses de 1997, à estreia mundial de “Ok Computer”, outro álbum dos Radiohead que ficou para a História. Encostado ao balcão do Paradise Garage, não imaginava, ele e mais umas quantas dezenas que lá estavam, a importância que iriam ter aquelas canções nas duas décadas vindouras. Mas, depois do luminoso “The Bends” e do emblemático “Ok Computer”, foi Kid A, quatro anos depois, que abriu as portas do futuro ao rapaz. Este, o futuro, já tinha muitas imagens de filmes e de livros na cabeça do rapaz. Só faltava a banda sonora. Em 2001, Kid A (tal como o igualmente notável “Amnesiac” no ano seguinte) anunciava o futuro, e em 2020, já o rapaz vai a caminho de velho, continua a anunciar o futuro. E desconfia que daqui a 20 anos, se ainda lhe restar lucidez para isso, continuará o rapaz já velho a dizer o mesmo.
 
 
(10) Sound of Silver, LCD Soundsystem (2007) – A síntese perfeita entre o velho e o novo, entre o rock (afinal continua bem vivo) e a eletrónica, entre o experimentalismo e as pistas de dança, entre os sons do mundo e a herança ocidental. Veio renovar o stock das canções que o rapaz traz na ponta da língua. E, se para uma ilha deserta levaria o “Song To The Siren”, a canção que tem reservada para o momento de celebração que um dia chegará é o “All My Friends”.

A comédia que me faz chorar

Ruggles of Red Gap: infelizmente a cena de que falo não anda pelos you tubes da vida

Vamos lá falar de respeito. Não tenho respeito nenhum por uma comédia que não me faça chorar. E ainda menos por um drama que não me faça rir.

Os cómicos mais lendários eram uns tipos tristes. Nos filmes de Chaplin e Buster Keaton é nos fios melodramáticos que ambos tropeçam, induzindo-nos a uma mansidão sentimental que logo a seguir estilhaçam com um gag. Ou seja, um tipo, quando é bom a fazer rir, ama. Escuso de dizer que quando é mau, odeia? Escuso, mas digo. Um dos problemas da comédia que hoje nos inunda é o ódio. O cómico, agora, não se dissolve na vida e ainda menos nas pessoas. O cómico passou a ser um juiz. Político, sobretudo. O sarcasmo substitui o gag. A altiva assertividade crítica destes novos cómicos amesquinha o objecto do humor. Às vezes não parece que estejam a fazer comédia, mas só a vingarem-se.

Ora bolas para a teoria. Vamos mas é ao cinema. Leo McCarey, um daqueles americanos irlandeses e católicos que fizeram a glória de Hollywood, foi o primeiro cineasta a ganhar o Oscar com uma comédia. Não é dessa, “Awful Truth”, com Cary Grant, que falo. A minha favorita, pelo que já me fez rir e chorar, é “Ruggles of Red Gap”. Um aristocrata inglês perde ao jogo o seu mordomo (Charles Laughton) para um milionário americano adoravelmente provinciano. Ruggles, o mordomo, é mais rígido do que um pau de vassoura: rígido na etiqueta que venera; rígido no respeito à estratificação social em que foi educado. Ao chegar a Red Gap, o saloiíssimo rincão onde vive o despretensioso milionário, Ruggles tem o choque da vida dele. O milionário é um poço de espontaneidade, os habitantes da small town uns gigantes de candura e generosidade.

De que é que nos rimos, no filme? Da humanização do mordomo. Uma a uma diluem-se as regras do espartilho que faziam Charles Laughton parecer um atávico armário com pernas. O mordomo desengoma-se, primeiro um braço, depois os lábios que aprendem a sorrir.

Acontece então uma das cenas mais políticas e mais comoventes do cinema americano. No saloon, os cámones todos a beber, alguém invoca o “discurso de Gettysburg”, dito por Lincoln, em plena Guerra Civil, no campo de batalha onde morreram 7500 homens. Um discurso que qualquer americano sabe de cor. Só que, no saloon – que vergonha – já ninguém se lembra. Até se ouvir um débil murmúrio. Voltam-se as cabeças e um grande plano mostra-nos os lábios de Laughton a dizer, como Lincoln, que “esta nação verá renascer a liberdade” e que “o governo do povo, pelo povo, para o povo jamais perecerá da face da terra.” O que vemos, nesse plano, é o rosto de um homem, um mordomo, que acaba de conquistar a plena humanidade. E a olharmos para esse homem igual aos outros homens, não sabemos, é verdade, se havemos de rir, se havemos de chorar. Fazemos, é bom de ver, as duas coisas.

15 de maio de 2020

O ânus cantor

cartaz de Joseph Pujol, artista de uma só variedade, no Moulin Rouge

Flatulava como quem fala. E eu estou a falar – a ver se não me confundo – de Joseph Pujol. Podia descrever-lhe o rosto anguloso, o bigode farto e negro a contrastar com a palidez do rosto, mas seria confundir o cu com as calças. Não era para a cara de Pujol que seja quem for olhava.
Olhos no seu olho, a França contemplava e extasiava-se com o posterior do marselhês Pujol, que trocara o aromático calor do forno de uma padaria pelo palco do Moulin Rouge. O ânus de Pujol, como o de qualquer um de nós, tinha os seus suspiros. Expirava, portanto. A inexorável diferença é que não só expirava, como inspirava também. Como e quando ele queria.
E venham, convida-vos o patrão do Moulin Rouge, assistir à entrevista em que o contratou. Pujol disse-lhe que era capaz, bufando, de imitar trovões, o disparo de um canhão. O patrão anuiu, mas não se rendeu. Tímido, Pujol anunciou: “Bebo, por trás”. O patrão trouxe água e o ânus de Pujol sorveu com elegância um litro que, com igual elegância, logo depositou noutro vaso, talvez já com ligeiro odor de água sulfurosa das termas.
Puxava o ar para o recto e libertava-o usando os esfíncteres. Descobrira isso, adolescente, a nadar no mar, quando sentiu o oceano a inundá-lo. O primeiro espectáculo no Moulin Rouge foi um êxito quase mortal. Esmagada por um espartilho, uma abundante francesa, incapaz de parar de rir, tombou desmaiada e teve de ser socorrida. Passou a haver uma enfermeira em permanência. Pujol, o flatómano, entrava de capa vermelha, calças pretas, gravata e luvas brancas. Imitava o Terramoto de São Francisco, mas começava pelo envergonhado peidinho de menina de colégio de freiras, logo o calórico traque de um talhante, a seguir o melodioso flato da noiva saciada em noite de núpcias, culminando na majestosa bufa de 20 segundos da costureira a rasgar dois metros de chita.
A essa introdução, e após mudança de roupa, nos bastidores, para umas calças com abertura apropriada, Pujol, com ventosidade bem medida, apagava velas a quase meio metro de distância. Deixava que o seu heterodoxo traseiro fumasse um pensativo cigarro e colocava, então, um tubo de borracha no seu órgão, canoro como ouvirão, ligando-o a uma ocarina. Tocava o tão lírico “Clair de Lune”, primeiro, logo depois o “O Sole Mio”, que o público, por lhe faltar rabo para mais, acompanhava a plenos pulmões. Em dias patrióticos, Pujol, ou essa parte dele de que não direi o nome para não enxovalhar a França, tocava a “Marselhesa”. Nestes nossos desditosos tempos de confinamento, Pujol teria vindo a uma varanda de Lisboa, prodigalizar a este povo sedento de ar puro um concerto de límpida analidade, entoando talvez os acordes do “Cheira bem, cheira a Lisboa”.
Em suma, Joseph Pujol, peidando-se das 8 às 9, foi durante anos a vedeta mais bem paga do Moulin Rouge, ganhando três vezes mais do que Sarah Bernhardt. Vinha vê-lo a realeza, o príncipe de Gales e o rei da Bélgica. Estarrecido com o prazer e o domínio que Pujol detinha dos seus esfíncteres, admirava-o o erógeno Sigmund Freud, então fixado na sua fase anal.
Pujol abandonou o mundo do espectáculo na I Grande Guerra, da qual dois dos seus filhos vieram inválidos. Sem ironia: a dor silenciou Pujol. Escolheu voltar ao cálido remanso da sua padaria. Morreu em 1945, soltando sabe-se lá que suspiros. A escola médica da Sorbonne quis comprar-lhe o corpo, fixada, é claro, no estudo do petit trou encantado. Os filhos recusaram. Consta que terão dito: “Há coisas na vida que devem ser tratadas simplesmente com reverência.”
Crónica publicada no Jornal de Negócios



14 de maio de 2020

Recuerda UNTITLED (Sin Nombre)




..., 2013 había empezado hace poco, estábamos en enero e yo regresaba a una ciudad donde había sido feliz; se suele decir que es un error.

Al contrario, ha sido apenas un cambio, un cambio profundo, una nueva vida. Barcelona había muerto y no era más la mía.

Con una Blackberry 9600 Bold he patrullado las calles de las dos ciudades que mejor conozco para hacer una muestra, en ese entonces no tenía el coraje de llamarle exposición.

No tenía ni título, ni nada, por eso le llamé UNTITLED, si fuera hoy le hubiese llamado SIN NOMBRE.

Pero, al revés, cada fotografía tenía un apodo muy personal, muy geográfico. 

Es también por ese entonces que suicidamos al fotógrafo original y, acto seguido, nasce Honigod.


Chiado I. Lisboa, 2012.




Augusta. Barcelona, 2012.





Toyo. Barcelona, 2012.




Aribau I. Barcelona, 2012.


Aribau II. Barcelona, 2012.


Suelo/Paseo. Barcelona, 2012.




Mondial. Barcelona, 2012.




Mudanzas. Barcelona, 2012.




Gràcia. Barcelona, 2012.




Plaza. Barcelona, 2012.
Oliver I. Lisboa, 2012.




Oliver II. Lisboa, 2012.




Amoreiras. Lisboa, 2012.




S. Jorge I. Lisboa, 2012.




S. Jorge II. Lisboa, 2012.




Maria Cachucha. Lisboa, 2012.



Chiado II. Lisboa, 2012.




PD – Cómo un cuadro o un texto que ha sobrevivido al tiempo, algunos objetos empeoran, pero siempre hay uno que otro que, por casualidad, madura muy bien.





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