29 de março de 2020

Morreu Mécia de Sena

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Com Mécia de Sena e Maria de Lurdes Belchior à porta do 939, Randolph Road
A esta nossa tormentosa Primavera, chega a mais outonal das notícias: a do falecimento de Dona Mécia de Sena.
Bati à porta de sua casa, em Santa Barbara, Califórnia, no 939 Randolph Road, em 1986. Pela voz e santa paciência de Mécia de Sena, eu, que julgava saber uma ou duas coisas sobre Jorge de Sena, descobri dele o imenso e brilhante lado escondido da lua. Vi a sala onde, cercado de livros, ouvia música, a secretária a que trabalhava, a mesa a que comia. E descobri que Mécia de Sena, a par da feroz guardiã da obra desse homem com quem partilhou o amor e a vida, era também e sobretudo uma finíssima estudiosa e crítica de poesia e romance, senhora de uma cultura variegada e vastíssima. De tudo isso me falava, e de música, e de ópera, enquanto, diligente, fazia um jantar para 10 ou 14 pessoas, como quem passa manteiga numa torrada. O seu ócio era a actividade.
Mécia revelou-me esse arquipélago de correspondência, acções e intervenções de um Sena imparável, mesmo quando as suas dores físicas o constrangiam, mas não vergavam. De Mécia descobri a irradiante luz própria.
E descobri a alegria simples e o riso: com ela, e com Maria de Lurdes Belchior, tive o picnic da minha vida, numa Missão Espanhola, na costa californiana, a bolinhos de bacalhau e uns inesquecíveis ovos verdes, delícia lusíada degustada com os olhos no imenso oceano que é o Pacífico.
Desse encontro resultou, mais do que uma amizade e um carinho mútuos, a minha admirada devoção por Mécia de Sena, pela sua inteligente persistência, pela sua cultura e rigor, pela descoberta da sua escrita cuidada, arrebatada, fluente e discursiva. Nesse remoto 1986 organizámos juntos um livrinho, Sobre Cinema, reunindo todos os textos que sobre filmes Jorge de Sena escrevera. Depois, quando me fiz editor, Mécia confiou-me as Dedicácias, e várias Correspondências de que destaco o belíssimo carteio de Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner Andresen, exemplo de partilha e amor poético e filosófico.
Já com Isabel de Sena, filha de Mécia e de Jorge, e desde que a idade tornara impossível a Mécia continuar a ser a guardiã literária de Sena, publiquei a Correspondência com Eugénio de Andrade e, há poucos dias, a Correspondência Jorge de Sena–João Sarmento Pimentel, na qual Isabel de Sena, que a organizou, incluiu também algumas cartas assinadas por Mécia de Sena. São, essas cartas, o testemunho do seu brilho intelectual, da sua escrita viva e da sua grandeza humana. É um pequenino orgulho poder juntar-me a essa homenagem que a filha Isabel lhe prestou.
Pimentel
Morreu, no dia 28 de Março de 2020, com 100 anos, Mécia de Sena. Digo-lhe adeus certo de que sou apenas um dos que guarda dela a memória de um ser humano grande e combativo, cheio dessa graça que é a vida. Eis o que nunca se apaga.


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Na Cinemateca com Mécia de Sena e António M. Costa

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