Quarentena, dia 17. D. José, abandonado à sua sorte.
Conheci-a
na divisão lá de casa onde, no escuro das persianas corridas, se projetavam
filmes e séries em streaming – muito mais
séries do que filmes, para dizer a verdade - e que, pomposamente, chamávamos de
“sala de cinema”. Na tela, passava um episódio de Black Mirror. Porque não pude deixar de reparar num certo ar de enfado
que fez questão em exibir, a minha educação levou-me a perguntar-lhe, no final
da história, se não se importava que prosseguisse para o episódio seguinte. A
sua resposta surgiu, enfadada também: porque haveríamos de continuar a ver o Black Mirror se já estávamos, na nossa
vida de todos os dias, a cada minuto da nossa existência confinada, dentro de
um episódio da série? Não seria mais saudável a ilusão de uma escapadela à
realidade que uma banal história de amor, protagonizada por
pessoas normais, nem feias nem bonitas, nem ricas nem pobres, nos poderia dar? Sim,
porque não, disse-lhe, tentando disfarçar ao máximo a estranha sensação que de
mim se apoderara. Algumas semanas fechado em casa e já me parecia coisa de
outro mundo, de um tempo passado, uma espécie de ficção científica invertida,
um anacronismo quase sem memória, um gesto antes tão habitual, tão essencial à
minha condição, como atentar numa simples história de amor, fosse ela contada numa
tela de cinema, nas páginas de um livro ou nos versos de uma canção. “Todas as
canções são canções de amor”, lembrava-me de ter lido ou ouvido vezes sem conta
toda a comunidade de críticos musicais dizê-lo, com a solenidade e o
absolutismo da sua autoridade moral, agora tão desfeita quanto desfeita estava
a noção de comunidade com que crescera.
Acabei,
claro, por me deixar vencer pelo seu argumento e, juntos – ou melhor, com o
distanciamento social que as regras impunham -, vivemos duas horas de comunhão
com uma história de amor gravada em casa, Marriage
Story do sempre caseiro Noah Baumbach, que, tal como muitas das demais
histórias de amor, era mais de desamor e de separação, mesmo quando, como era o
caso, as partes desavindas, Scarlett Johansson e Adam Driver, pareciam
continuar a amar-se, seja lá o que isso queira dizer, ontem como hoje. A partir
daí, sempre guiado pela sua doce ilusão de felicidade, fui ultrapassando a
estranheza e o desconforto de um tempo que já não era o meu, de um eu que já
não era o meu, e, filme a filme, livro a livro, canção a canção, habituei-me a
partilhar aquilo que ela entendia como o seu grito de resistência ao poder
destruidor da memória. Sempre na dita sala de cinema, convertida também em espaço de música e de leituras, e cada vez menos respeitadores das regras de
distanciamento social, que se ia encurtando à medida da frequência e
intensidade das nossas piscadelas de olho, que eu, numa juvenil inconsciência, mimetizava
com o automatismo e descontração de um emoji.
Nos intervalos de cada sessão, e sem que o tivéssemos combinado, passámos a
coincidir na cozinha à hora do pequeno-almoço, e depois na sala de jantar
durante as demais refeições. E pensámos, com a naturalidade de quem tem
interesses e necessidades em comum, que não seria má ideia partilharmos o mesmo
espaço de teletrabalho, ou fazermos juntos o treino físico online, ou dividirmos tarefas na arrumação e limpeza da casa. Enquanto
isso, as paredes de casa ganhavam cores de esperança com as suas composições
fotográficas de um futuro de libertação com um suave travo a passado, e a
acidez e cinismo dos meus textos dava lugar a histórias de fantasia e
encantamento. E, claro, nas visitas familiares ou sociais a outras casas,
habituámo-nos a convergir no mesmo écran, a uma só voz, a um só aceno de mão, nas
saudações e nas despedidas.
Como uma
banal e singela de amor, chegou a noite em que, como não podia deixar de ser,
estilhaçámos o que ainda restava da distância que nos impedia de sermos dois
corpos num só. E, tal como Scarlett e Adam o fizeram numa fase remota da sua
história, entregámo-nos, com juras de sangue, suor e lágrimas, ao paradoxo de
querermos ser tão livres e independentes quanto unos e indivisíveis no nosso comum
caminho.
E tudo
prosseguiria como uma banal e singela história de amor, igual às que os filmes,
livros e canções retro que ela me trouxe
de volta, não fosse esse pequeno detalhe de não sermos nós, ela e eu, duas
personagens normais de uma normal história de amor. Não fossemos nós
acometidos, logo no momento em que os nossos corpos se uniram, de um desejo irresistível
de ir para as ruas e praças desertas, num longo abraço coletivo simbólico,
gritar a nossa libertação. De fugirmos para o Terreiro do Paço - onde D. José
abandonado à sua sorte combate sozinho as víboras, agora vírus, da oposição - gritar
a todos os confinados a nossa vitória sobre as forças invisíveis.
Essa tua Sala de Cinema tem muito que se lhe diga. Viajei ... foi bom.
ResponderEliminarRita: viajar sem sair de casa, é mesmo essa a ideia :-)
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