23 de março de 2020

Querido, comi o carro




querido, comi o carro

A coisa passou-se há algum tempo. Conto sem introdução ou parágrafo. Vendi o carro para pagar a casa, a água, a luz, o seguro de saúde, enfim, para existir com as contas em dia. Porque não basta trabalhar. Muitas vezes não há, de todo, como existir por muito que se trabalhe. Com rigor. Com paixão. Dedicadamente. Nessas alturas, fingimos que somos árvores e, esquecidos de fruto e flor, despojamo-nos das possíveis folhas como se nada fosse, e dos ramos, tudo para preservar a raiz. É a altura de querido, comi o carro. Contudo, o que temos, o pequeno mundo que construímos é todo ele, também, um património afectivo. Amoroso. É tempo. O nosso tempo. Da nossa vida. Então, qual raiz?

Eu gostava do meu carro. Muito. Dizia a mim mesma que era por ter a matrícula com as letras do nome do meu Cão, o melhor do mundo em quatro perfeitíssimas patas, Cão hipérbole de todos os cães havidos e por haver. E talvez fosse, de facto, por isso, por tê-lo comprado depois de o Cão ter morrido e ver sinais da inexistente comunicação entre os mundos em duas letras de matrícula… A saudade inventa estas coisas para nos deixar acompanhados de quem não está. Mas a verdade é que também gosto das minhas chávenas e elas não contactam o além, e dos meus candeeiros, dos tapetes. Tenho apego aos meus pronomes possessivos. E quando me armei em saltimbanco, em cada mudança de casa, felizmente poucas, os caixotes de livros emparedavam-me em desespero de ter de os voltar a arrumar. Os meus livros. Então, quando vendi o meu carro, em vão consolo pensei, também Lucas Pires teve de o fazer, teve de comer o carro, e creio, como eu arrependeu-se de ter contado porque isto é uma coisa que fica no ouvido dos outros.

Os outros mudam quando comemos o carro. Quando pedimos ajuda - ajuda? Ainda que a ajuda seja em forma de assim emprego, trabalho, essa luz a abrir escuros onde a alma se põe e a capacidade de acreditar na competência, no mérito, na excelência. Num segundo, e eu tenho um metro e setenta e um, passei logo a medir um metro e cinquenta e três quando me fizeram o favor de me indicar para algo tão pouco, tão menor, tão longe do que sei fazer. Foi uma experiência reveladora: como nos vêem, porquê. E pedagógica. Aprendi o que não quero ser nem serei para quem confiar em mim o suficiente para me pedir ajuda. Mas também há quem lute por nós, e mesmo que não ganhe, em dias de grande tristeza, dias de não posso mais, de não há como, dias bons para desistir ou morrer, é com o seu fôlego que nos salva. Sem metáforas. Os nossos campeões, heróis particulares e sem reconhecimento, salvam-nos, ainda que nos digam, olha, gostaram muito dos teus textos, mas só estão a meter estagiários. Um metro e setenta e um.

Recuperei o carro, é verdade. Não desisti nem quando tive vontade. Mas envergonha-me muito viver ao lado de gente que agarra o privilégio sem abraçar a responsabilidade. E confunde serviço público com estação de auto-serviço. E outras pérolas de café onde desfiamos os males do mundo com bica cheia ou curta porque são fáceis de apontar e difíceis de curar – difícil, não é impossível: o psicanalista que mais respeito e admiro disse-me: zangue-se! Pois bem, estou zangada: dizem, o livro, poesia, literatura, a imprensa de qualidade são coisa de nicho. Sim, sim, na altura do império também o nosso rei não permitia que as escolas distassem menos de x quilómetros entre si, nas colónias, não fosse o povo aprender a pensar e agir como quem pensa, e em vez de comer o carro, implantasse a república.


4 comentários:

  1. "Tenho apego aos meus pronomes possessivos." Ó Eugénia! Ista andar a falar dos outros é muito feio, ainda por cima se os outros somos nós! Que classe de texto, há bonés para quem os quiser - ou conseguir - apanhar! Beijos das Áfricas

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  2. Somos sempre o outros para todos os outros além de nós... Ó drama, esta falta de perfeição!

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  3. Eugénia, se não tivesse já aqui pedido publicamente ajuda para os meus gatos não morrerem, este seu texto dava-me força para a pedir agora. E agora, com as suas palavras e os bichos salvos, posso agradecer e respirar fundo.Já não me doi o que comi para aqui chegar.Já não tenho 1m50. E tenho casa e um quarto livre e arejado, quando for preciso.

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    1. Olá, Teresa! Para rever os velhos amigos da bloga, já valeu a pena este recomeço do EeT - bem vinda.

      É difícil não deixar que as circunstâncias nos definam... Bichos e alma salva. Obrigada, Teresa. Um abraço.

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