querido, comi o carro
A
coisa passou-se há algum tempo. Conto sem introdução ou parágrafo. Vendi o
carro para pagar a casa, a água, a luz, o seguro de saúde, enfim, para existir
com as contas em dia. Porque não basta trabalhar. Muitas vezes não há, de todo,
como existir por muito que se trabalhe. Com rigor. Com paixão. Dedicadamente. Nessas
alturas, fingimos que somos árvores e, esquecidos de fruto e flor,
despojamo-nos das possíveis folhas como se nada fosse, e dos ramos, tudo para
preservar a raiz. É a altura de querido,
comi o carro. Contudo, o que temos, o pequeno mundo que construímos é todo
ele, também, um património afectivo. Amoroso. É tempo. O nosso tempo. Da nossa
vida. Então, qual raiz?
Eu
gostava do meu carro. Muito. Dizia a mim mesma que era por ter a matrícula com
as letras do nome do meu Cão, o melhor do mundo em quatro perfeitíssimas patas,
Cão hipérbole de todos os cães havidos e por haver. E talvez fosse, de facto, por
isso, por tê-lo comprado depois de o Cão ter morrido e ver sinais da
inexistente comunicação entre os mundos em duas letras de matrícula… A saudade
inventa estas coisas para nos deixar acompanhados de quem não está. Mas a
verdade é que também gosto das minhas chávenas e elas não contactam o além, e
dos meus candeeiros, dos tapetes. Tenho apego aos meus pronomes possessivos. E
quando me armei em saltimbanco, em cada mudança de casa, felizmente poucas, os
caixotes de livros emparedavam-me em desespero de ter de os voltar a arrumar.
Os meus livros. Então, quando vendi o meu
carro, em vão consolo pensei, também Lucas Pires teve de o fazer, teve de comer
o carro, e creio, como eu arrependeu-se de ter contado porque isto é uma coisa
que fica no ouvido dos outros.
Os
outros mudam quando comemos o carro. Quando pedimos ajuda - ajuda? Ainda que a ajuda
seja em forma de assim emprego,
trabalho, essa luz a abrir escuros onde a alma se põe e a capacidade de
acreditar na competência, no mérito, na excelência. Num segundo, e eu tenho um
metro e setenta e um, passei logo a medir um metro e cinquenta e três quando me
fizeram o favor de me indicar para algo tão pouco, tão menor, tão longe do que
sei fazer. Foi uma experiência reveladora: como nos vêem, porquê. E pedagógica.
Aprendi o que não quero ser nem serei para quem confiar em mim o suficiente
para me pedir ajuda. Mas também há quem lute por nós, e mesmo que não ganhe, em
dias de grande tristeza, dias de não posso mais, de não há como, dias bons para
desistir ou morrer, é com o seu fôlego que nos salva. Sem metáforas. Os nossos
campeões, heróis particulares e sem reconhecimento, salvam-nos, ainda que nos
digam, olha, gostaram muito dos teus textos, mas só estão a meter estagiários. Um
metro e setenta e um.
Recuperei
o carro, é verdade. Não desisti nem quando tive vontade. Mas envergonha-me
muito viver ao lado de gente que agarra o privilégio sem abraçar a
responsabilidade. E confunde serviço público com estação de auto-serviço. E
outras pérolas de café onde desfiamos os males do mundo com bica cheia ou curta
porque são fáceis de apontar e difíceis de curar – difícil, não é impossível: o
psicanalista que mais respeito e admiro disse-me: zangue-se! Pois bem, estou zangada: dizem, o
livro, poesia, literatura, a imprensa de qualidade são coisa de nicho. Sim,
sim, na altura do império também o nosso rei não permitia que as escolas
distassem menos de x quilómetros entre si, nas colónias, não fosse o povo
aprender a pensar e agir como quem pensa, e em vez de comer o carro, implantasse a república.
"Tenho apego aos meus pronomes possessivos." Ó Eugénia! Ista andar a falar dos outros é muito feio, ainda por cima se os outros somos nós! Que classe de texto, há bonés para quem os quiser - ou conseguir - apanhar! Beijos das Áfricas
ResponderEliminarSomos sempre o outros para todos os outros além de nós... Ó drama, esta falta de perfeição!
ResponderEliminarEugénia, se não tivesse já aqui pedido publicamente ajuda para os meus gatos não morrerem, este seu texto dava-me força para a pedir agora. E agora, com as suas palavras e os bichos salvos, posso agradecer e respirar fundo.Já não me doi o que comi para aqui chegar.Já não tenho 1m50. E tenho casa e um quarto livre e arejado, quando for preciso.
ResponderEliminarOlá, Teresa! Para rever os velhos amigos da bloga, já valeu a pena este recomeço do EeT - bem vinda.
EliminarÉ difícil não deixar que as circunstâncias nos definam... Bichos e alma salva. Obrigada, Teresa. Um abraço.