À espera da poção mágica
Escrevi o texto abaixo para o Natal, a
pretexto de um destes últimos Natais. Para um Natal em família. Agora, privado
dos beijos e abraços da família alargada que nele é retratada, o sol da Páscoa
a acenar lá em cima fez-me voltar a ele. Na altura, os perigos que pairavam no
ar não eram tão imediatos e eram outros - embora esses continuem a existir e é até
provável que, quando este perigo imediato passar, estejam mais vivos e ameaçadores
do que nunca. Por momentos, ocorreu-me adaptar o texto à Páscoa e à ameaça que agora
espreita ao virar de cada esquina. Mas logo percebi que o que mais falta nos
faz neste momento é mesmo um Natal celebrado em família. Com toda a família
alargada que cada um tenha. É isso: no dia em que a poção mágica derrotar em definitivo o vírus, deveria antecipar-se por decreto o Natal. Que esse Natal venha
rapidamente, é o que desejamos. Enquanto não o temos, celebremos a memória dos
dias passados e dos que virão. Boa Páscoa a todos/as.
“Dizem que Rovaniemi na Lapónia é a sua
residência oficial”.
Estava lançado o mote para a celebração do Natal em família. Não contando com o
autonomeado mestre-de-cerimónias (isto embora lhe faltassem atributos para se
assumir como o MC que os juniores reclamavam), estavam ali vinte e duas cabeças
pensantes, dos seis aos setenta e quatro anos de idade. Os mais jovens,
sequiosos de levar à prática os seus instintos competitivos, os graúdos com uma
vontade quase envergonhada de pôr à prova supostos conhecimentos adquiridos em
toda uma vida adulta de livros, jornais e noticiários. Ou talvez tudo se
resumisse à mais elementar das questões existenciais: de um lado, jovens a
querem passar por velhos, do outro “cotas” a fazerem de jovens, uns com uma
senha de acesso livre a um mundo ainda proibido, outros embebidos num
entusiasmo juvenil desamarrado das censuras prévias que a idade se autoimpõe.
Todos de igual para igual, unidos na convergência de interesses que permitiram
a mediana das idades (aí pelos 30 anos) e um sorteio na organização das equipas
orientado pela representatividade das diversas faixas etárias.
“Natal em espanhol, francês e inglês”. Eis que um dos adolescentes, enquanto
se engasga com a pronúncia de uma das derivações linguísticas da palavra, toma
consciência, rejubilante de euforia, de quão universal pode ser a mensagem das
festividades natalícias. Mas não está só. Logo de seguida, “o pai de Luke Skywalker e da Princesa Leia” e “o único na Aldeia gaulesa que não pode tomar a poção mágica”
arrancam das mais imberbes das vozes, duas delas no sexto Natal apenas, um
orgulhoso “eu sei” que, quase que vou jurar, tingem de uma vergonha não
confessada um ou outro dos mais idosos. Segundo consta, até o Pai Natal, lá em
cima já na sua viagem de regresso, terá sido obrigado a travar a fundo a marcha
das suas renas para agradecer a todos os que, cá em baixo, continuam a
permitir-lhe a sã convivência com os universos de Lucas, Goscinny/Uderzo e Walt
Disney.
O jogo
prossegue sem que ninguém desarme. Sucedem-se epifanias, abrem-se horizontes,
reencontram-se amores perdidos, descobrem-se paixões. À “escritora que ninguém sabe quem é” respondeu um dos machos
presentes, certamente inquietado pelo chamamento do mais feminino dos
mistérios, com páginas e páginas, logo no dia seguinte, de leitura voraz da Amiga Genial da Senhora Ferrante. Outro,
desconsolado por ter não ter dado o devido valor em vida a uma outra senhora de
voz sofrida, que “cantou a reabilitação
numa casa de vinhos antes de morrer”, adormece nessa noite a ouvir a pobre
da Amy Winehouse. Um outro ainda, subitamente alertado para os perigos que
espreitam atrás da ignorância crescente que desperta a pergunta “num Estado de Direito, quais são os três
poderes sempre separados?”, volta a ler Montesquieu com a sofreguidão de
quem teme não poder voltar a fazê-lo. À lembrança do “ano do último campeonato do Sporting”, vê-se escorrer uma lágrima
furtiva. Um sopro de alívio faz-se ouvir quando o MC pede à sala que se
identifiquem “as 3 instituições da Troika
que tomaram conta de Portugal entre 2011 e 2014”. E, ao anúncio do “casal que no cinema estava de olhos bem
fechados e que acabou separado”, pressente-se alguém a tremer de nervosismo
- logo desfeito pela forma hábil como um sorriso fintou a polémica dissimulada na
pergunta seguinte, formulada através de uma expressão tão delicada (estavam
crianças a participar e não havia salas de acesso reservado) como “onde podemos ver as pilinhas do Robert em
Portugal?”.
As
respostas dão lugar a reações desencontradas, ali uma explosão de alegria
equiparável a um golo de levantar o estádio, acolá a frustração de uma palavra
debaixo da língua que se deixou fugir, mais além um sentimento de injustiça
pela álea própria de um jogo que também é de sorte e azar, noutra banda ainda a
sensação do dever cumprido, ou de superação de expetativas, de quem sente estar
a ser testado por outros. Mas, por mais diversas que sejam as reações, em
momento algum, ao longo das cerca de duas horas e meia de jogo, se vislumbra o
mais leve sentimento de indiferença ou de apatia, ou se evidencia qualquer
sinal de cansaço ou monotonia. A razão para o empolgamento parece bem simples
de decifrar: são vinte e três cabeças, dos seis aos setenta e quatro anos de
idade, todos unidas por laços de sangue ou afinidade, e imbuídas do mais puro
prazer de entretenimento de um quiz.
O mestre-de-cerimónias, no entanto, consegue ver mais do que isso. Num curto vislumbre, vê, ali mesmo, a solução para todas as desavenças familiares e para todas as incompreensões da gap generation, o antítodo para os problemas crónicos do abandono ou desinteresse escolar, numa palavra, o elixir miraculoso para a ausência ou défice de comunicação do mundo moderno. Iluminado pela extraordinária revelação, o mestre-de-cerimónias quer anunciar, primeiro aos presentes, depois ao mundo inteiro, o poder transformador do conhecimento e da palavra. Tem consigo pelo menos vinte e dois apóstolos dispostos a espalhar a boa nova.
O mestre-de-cerimónias, no entanto, consegue ver mais do que isso. Num curto vislumbre, vê, ali mesmo, a solução para todas as desavenças familiares e para todas as incompreensões da gap generation, o antítodo para os problemas crónicos do abandono ou desinteresse escolar, numa palavra, o elixir miraculoso para a ausência ou défice de comunicação do mundo moderno. Iluminado pela extraordinária revelação, o mestre-de-cerimónias quer anunciar, primeiro aos presentes, depois ao mundo inteiro, o poder transformador do conhecimento e da palavra. Tem consigo pelo menos vinte e dois apóstolos dispostos a espalhar a boa nova.
Tem?
Teria, não fosse o MC ter acordado do sono retemperador que só a noite de Natal
é capaz. Acordou para o mundo, hélas. De um mundo sem apóstolos, sem o Pai
Natal e sem os super-heróis que, umas horas antes, no quiz de faz-de-conta familiar, fizeram de vinte e três irmãos,
pais, filhos, avó e netos, genros, noras e primos, um universo particular.
Ficou a ilusão, cogitou o falso mestre, já sem cerimónia nenhuma. A ilusão do
exemplo de motivação e inspiração de um simples jogo de encantar, feito do
saber das coisas passadas, da sua marca no presente e, quem sabe, da sua
capacidade de influenciar o futuro. Quem sabe no próximo Natal o deixariam voltar
a arrastar uns quantos primos no faz-de-conta. E talvez, em anos vindouros,
mais e mais primos e famílias o acompanhassem pelo mundo fora. Ou não. A dar
ouvidos ao mundo, dizem que cada vez mais perigoso, não é de pôr de lado a
possibilidade de a atividade dos mestres-de-cerimónia, assim como a de todos os
que os inspiram – escritores, músicos, atores, cineastas, dramaturgos, artistas
em geral -, acabar proibida para dar lugar a uma única e universal ficção, com
um guião pré-determinado. Uma ficção que, nesses tempos negros que aí virão, se
confundirá com a própria verdade. Mas isso é o que se diz por aí. O MC não vai
em conversas. Prefere continuar a acreditar no Pai Natal, com pelo menos outras
vinte e duas almas. May The Force Be With
Them.
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