4 de abril de 2020

Não há futebol mas há Valdano





“Romário fez da preguiça uma variável da finta. A bola tinha de ser levada até sua casa, que ficava na área, onde esperava imóvel, mas com a tensão de um cão perdigueiro. Quando recebia a bola, tornava-se um ilusionista, um Houdini da bola. Fui treinador dele duas luas e, nos jogos de posse, era um estorvo. Mas quando a baliza aparecia, tornava-se um génio do engano e da precisão. Pensava antes dos guarda-redes e fazia sempre o oposto do que se pensava. Quando o guarda-redes queria responder, a bola estava dentro da baliza e Romário parecia imperturbável na comemoração, mas creio que aguentava o riso.  Não é de admirar porque os seus golos eram gozões. Um humorista do golo. Depois voltava ao modo repouso. Gostaria de saber se hoje haveria um treinador com valentia para o contratar, porque a verdade é que eram mais os golos que marcava que os quilómetros que corria.”

 É caso para perguntar se alguém se atreve a ter dúvidas sobre se o futebol é uma arte depois de o ver descrito pelo punho de Jorge Valdano, nas imperdíveis crónicas que nos deixa todos os sábados na última página do jornal A Bola. Valdano escreve com a autoridade de quem foi um grande jogador de futebol – no seu tempo fez uma dupla memorável com Butragueño no Real Madrid e, na Seleção da Argentina, foi preciosa muleta de Maradona no título mundial de 1986 – e com a poesia e leveza de alguém que, sabendo tudo de futebol, o trata com a grandeza cultural que merece a “gloriosa simulação da realidade” em que, nas suas próprias palavras, assenta. Se o futebol não sabia ainda que mais não era do que uma ficção, segundo Valdano o coronavírus encarregou-se de “lhe contar a verdade”. Essa verdade da mentira sobre a qual se constrói, mas, ao mesmo tempo, aquela de todos os que, desde os mais remotos tempos de leitor na infância, se tornaram seus adeptos, não com o fervor do fervoroso adepto de agora, mas com a mesma paixão ingénua e infantil alimentada pelos heróis do imaginário da banda desenhada de então. O Mundial da Argentina de 78 (o primeiro que vi e nem Maradona nem Valdano ainda lá estavam) vinha aí e, até então, o futebol, tal como agora em tempos de quarentena, era apenas uma fantasia que, à falta de transmissões televisivas e de idas à Luz, tinha lugar na cabeça de um rapazola de oito ou nove anos como o tinham outras aventuras vividas nas outras “gloriosas simulações da realidade” que eram as páginas de Tintim, Astérix e Lucky Luke, Ric Hochet e Michel Vaillant. Já na altura havia quem ocupasse no jornal A Bola das segundas, quintas e sábados o lugar que é hoje de Valdano aos sábados. Se havia quem, como eu, tivesse começado a ler Astérix antes de aprender a ler, havia também quem, ao mesmo tempo, como eu também, tivesse sentido o suave aroma a literatura da brilhante geração jornalistas de então de A Bola (ainda sei de cor os nomes de boa memória de Carlos Pinhão, Alfredo Farinha, Aurélio Márcio e Vítor Santos e dos ainda ativos Cruz dos Santos, Vítor Serpa e Joaquim Rita) muito antes de ter posto os pés num estádio ou os olhos numa, inexistente à data, transmissão televisiva.  

O Valdano da quarentena de hoje é bem mais do que um brilhante escriba e filósofo / poeta do futebol. É uma porta aberta para o imaginário, um livre-trânsito, uma carta branca, para o preenchimento do vazio das desoladas bancadas dos estádios e das transmissões interrompidas nos écrans de televisão. Num tempo em que muitos – os tais fervorosos adeptos – pareciam tê-lo esquecido, Valdano vem devolver ao futebol a suprema magia da “gloriosa simulação da realidade” que é, a memória do sentido estético e do prazer lúdico do entretenimento que, com o seu companheiro Maradona em campo, ainda existia e parecia ter-se perdido. Talvez o consiga fazer porque e enquanto não há futebol no campo. Mas isso não é coisa pouca. Nunca tive o prazer de visitar a Aldeia Gaulesa e de beber a poção mágica noutro lugar que não o da ficção. Mas as sensações e memórias que guardo dessas visitas, agora revividas à distância através do meu filho de sete anos, são das mais gloriosas de sempre.

4 comentários:

  1. Valdano tem na mão o que Messi tem no pé :)

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  2. Valha-nos isso, Manuel, num tempo em que nem o pé de Messi nos acode :-)

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  3. Um mistério, é o que te digo. Um mistério.

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    1. Rita, é o Messi com a bola, O Valdano com a escrita, e tu com o traço fino do teu desenho.

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