5 de maio de 2020

(3) Closer

A capa testamento de Closer


Depois de “The Wall” e de “Scary Monsters”, chega a vez de Closer, dos Joy Division, na lista dos álbuns da minha vida. Ficam aqui a saber porquê.  

Quando Closer me foi apresentado pela voz do António Sérgio no Som da Frente, talvez se tenham seguido os primeiros três minutos da minha vida em que o puro prazer esteve associado à melancolia e sofrimento de uma voz. Como uma faca espetada violentamente no coração que provocasse uma dor reconfortante e libertadora. Só depois de me estrear a ouvir Ian Curtis fiquei a saber que acabara, uns dias antes, com uma corda à volta do pescoço, de pôr fim à sua existência no mundo dos mortais para se tornar para sempre imortal. Sem a sua morte a 18 de maio de 1980, a história dos meus gostos musicais teria certamente sido outra. 

Para quem nada conhecia do mundo ainda, o culto depressa ganhou forma. Feito à custa de muita imaginação, porque, naqueles tempos, as imagens demoravam a chegar a Portugal e a aparência frágil e indefesa de Curtis não era ainda parte do mito. Mais tarde vim a saber – ou pelo menos gosto de imaginar assim o mito – que foi isso que fez o corpo sucumbir. Ian Curtis, o símbolo de toda uma geração, o guia inspirador de uma revolução musical cuja influência perdurou até aos nossos dias, foi um fardo pesado demais para aquele rapazinho dos subúrbios de Manchester, educado para ter uma vida remediada igual a tantas outras, e sem estofo para outras ambições para além de uma carreira no funcionalismo público lá da terra. Curtis, que tanto se esforçou para não se desviar de uma banal existência, que antes dos vinte anos de idade já era marido de uma simplória como ele, e pouco depois pai de uma criança, não aguentou os mais altos desígnios messiânicos que, sem o seu aval, lhe reservaram. E como foram violentas as partidas que lhe pregou esse destino não desejado. Violentas ao ponto de o arrastarem para um palco onde o seu corpo emprestado era sacrificado a uma alma conturbada, ao ritmo de uma voz dilacerada pela angústia, num ritual de celebração que, sucessivamente, o fazia evoluir do lamento contido para o grito de raiva pela sua condição, e deste para a explosão final da dança mais bizarra que alguma vez se viu. A tal dança epilética que já prenunciava a terrível doença que aí vinha, e que – só pode ser obra da transcendência – se tornou na expressão perfeita para um corpo que acabara de ser libertado das suas amarras terrenas para encontrar, finalmente, a sua essência universal e intemporal. 

Como predestinado que era, Curtis teve ao seu serviço todos os ingredientes necessários à obtenção da imortalidade. Desde logo, uma banda feita à sua medida, com músicos cuja excelência nunca foi obstáculo ao seu protagonismo, o qual se ia revelando cada vez mais nas letras torturadas e no som negro e claustrofóbico que lhes impunha. Foi tanto o peso da sua angústia nos Joy Division que, uma vez enterrado, os seus companheiros de estúdio e de palco, não por acaso rebatizados como New Order, partiram para aventuras dançantes mais festivas. Todos, Curtis, Peter Hook (baixo) Bernard Sumner (guitarra) e Stephen Morris (bateria) tiveram a graça divina de contar com Tony Wilson e Martin Hannett. Wilson, o criador da Factory e grande responsável pelo fenómeno Madchester dos anos 80, que os descobriu e logo percebeu que iriam ficar na História e o iriam arrastar a ele também para a fama eterna. Hannett, o produtor genial que transformou uma banda de garagem com reminiscências punk num manifesto musical que foi lema e padrão para muito do que de mais interessante se produziu na década, dentro e fora da Factory. Finalmente, a morte prematura de Curtis, aos 23 anos, quando o culto começava a alastrar, nas vésperas daquela que teria sido a primeira digressão em terras americanas. Até a morte, com uma corda à volta do pescoço na cozinha de sua casa, foi planeada de modo a escancarar as portas da eternidade: uma nota em que dizia “I just can´t cope anymore” (“não aguento mais”) e os igualmente torturados Iggy Pop (no gira-discos) e Stroszek de Werner Herzog (no vídeo) a fazerem-lhe companhia. Para trás ficavam dois álbuns apenas, “Unknown Pleasures” e Closer, mas pelo menos duas dezenas de grandes hinos pop como “Transmission”, “She´s Lost Control”, “Love Will Tear Us Apart”, “Isolation”, “Heart and Soul”, “Passover”, “Twenty Four Hours” e “Atmosphere” (alguns, como o emblemático “Atmosphere”, constantes apenas de compilações póstumas). Com a sua morte, estava resolvido o dilema que o dividiu até ao desespero, entre uma vida dedicada à família e confinada à vilória de Macclesfield, por um lado, e a transcendência de uma existência superior, sem fronteiras de espaço e tempo, ao serviço da música e da poesia e sobretudo de milhões de almas que o continuaram ou passaram a ouvir para sempre, por outro lado.

Closer acabou por ser editado já depois do suicídio de Curtis, exibindo na capa a imagem de uma lápide de cemitério que, tendo sido concebida antes deste, era já um sinistro prenúncio da fatalidade que estava iminente. Decorridos quarenta anos sobre a morte de Ian Curtis e do álbum testamento que foi Closer, agradeço, como muitos milhões pelo mundo fora, o sacrifício que através dela se consumou. Sem ela e o final prematuro dos Joy Division anunciado por Closer, talvez a história tivesse sido outra. Talvez não sentisse a premência de continuar a ouvi-lo em grande parte das minhas seleções musicais desde então, de continuar a preferir a claustrofobia de um som denso e abafado ao fogo-de-artifício de um refrão fácil e escorreito. Talvez não gostasse tanto do trip-hop de Bristol da década de 90 ou dos Radiohead de Thom York que entraram pelo século XXI. E, claro, a declaração “love will tear us apart” não me soaria tão dramática, ambígua e atraente.
 
 

6 comentários:

  1. Rita, fico contente. Para conhecermos melhor os Joy Division para além dos álbuns Unknown Pleasures e Closer e de várias compilações (há temas como o extraordinário "Atmosphere" que só encontras em compilações), vê os filmes Control do Anton Corbijn e o documentário "Joy Division" que está no Filmin.

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  2. * Sorry, para conheceres melhor :-)

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  3. CAGRANDA PINTA DIOGO! Estou em falta, é sabido, mas em breve darei notícias musicais.

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    1. Vamos a isso. Amanhã espero ter tempo para avançar com os próximos capítulos :-)

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