A capa testamento de Closer
Depois de “The Wall” e de “Scary Monsters”, chega a vez de Closer, dos Joy Division, na lista dos
álbuns da minha vida. Ficam aqui a saber porquê.
Quando Closer me foi apresentado
pela voz do António Sérgio no Som da
Frente, talvez se tenham seguido os primeiros três minutos da minha vida em
que o puro prazer esteve associado à melancolia e sofrimento de uma voz. Como
uma faca espetada violentamente no coração que provocasse uma dor reconfortante
e libertadora. Só depois de me estrear a ouvir Ian Curtis fiquei a saber que
acabara, uns dias antes, com uma corda à volta do pescoço, de pôr fim à sua
existência no mundo dos mortais para se tornar para sempre imortal. Sem a sua morte
a 18 de maio de 1980, a história dos meus gostos musicais teria certamente sido
outra.
Para quem nada conhecia do mundo ainda, o culto depressa ganhou forma. Feito
à custa de muita imaginação, porque, naqueles tempos, as imagens demoravam a
chegar a Portugal e a aparência frágil e indefesa de Curtis não era ainda parte
do mito. Mais tarde vim a saber – ou pelo menos gosto de imaginar assim o mito
– que foi isso que fez o corpo sucumbir. Ian Curtis, o símbolo de toda uma
geração, o guia inspirador de uma revolução musical cuja influência perdurou
até aos nossos dias, foi um fardo pesado demais para aquele rapazinho dos subúrbios
de Manchester, educado para ter uma vida remediada igual a tantas outras, e sem
estofo para outras ambições para além de uma carreira no funcionalismo público
lá da terra. Curtis, que tanto se esforçou para não se desviar de uma banal
existência, que antes dos vinte anos de idade já era marido de uma simplória
como ele, e pouco depois pai de uma criança, não aguentou os mais altos
desígnios messiânicos que, sem o seu aval, lhe reservaram. E como foram
violentas as partidas que lhe pregou esse destino não desejado. Violentas ao
ponto de o arrastarem para um palco onde o seu corpo emprestado era sacrificado
a uma alma conturbada, ao ritmo de uma voz dilacerada pela angústia, num ritual
de celebração que, sucessivamente, o fazia evoluir do lamento contido para o
grito de raiva pela sua condição, e deste para a explosão final da dança mais
bizarra que alguma vez se viu. A tal dança epilética que já prenunciava a
terrível doença que aí vinha, e que – só pode ser obra da transcendência – se
tornou na expressão perfeita para um corpo que acabara de ser libertado das
suas amarras terrenas para encontrar, finalmente, a sua essência universal e
intemporal.
Como predestinado que era, Curtis teve ao seu serviço todos os ingredientes
necessários à obtenção da imortalidade. Desde logo, uma banda feita à sua
medida, com músicos cuja excelência nunca foi obstáculo ao seu protagonismo, o
qual se ia revelando cada vez mais nas letras torturadas e no som negro e
claustrofóbico que lhes impunha. Foi tanto o peso da sua angústia nos Joy Division que, uma vez enterrado,
os seus companheiros de estúdio e de palco, não por acaso rebatizados como New Order, partiram para aventuras
dançantes mais festivas. Todos, Curtis, Peter Hook (baixo) Bernard Sumner (guitarra)
e Stephen Morris (bateria) tiveram a graça divina de contar com Tony Wilson e
Martin Hannett. Wilson, o criador da Factory e grande responsável pelo
fenómeno Madchester dos anos 80, que os descobriu e logo percebeu que iriam
ficar na História e o iriam arrastar a ele também para a fama eterna. Hannett,
o produtor genial que transformou uma banda de garagem com reminiscências punk
num manifesto musical que foi lema e padrão para muito do que de mais
interessante se produziu na década, dentro e fora da Factory. Finalmente,
a morte prematura de Curtis, aos 23 anos, quando o culto começava a alastrar, nas
vésperas daquela que teria sido a primeira digressão em terras americanas. Até
a morte, com uma corda à volta do pescoço na cozinha de sua casa, foi planeada
de modo a escancarar as portas da eternidade: uma nota em que dizia “I just
can´t cope anymore” (“não aguento mais”) e os igualmente torturados Iggy Pop
(no gira-discos) e Stroszek de Werner Herzog (no vídeo) a fazerem-lhe
companhia. Para trás ficavam dois álbuns apenas, “Unknown Pleasures” e Closer, mas pelo menos duas
dezenas de grandes hinos pop como “Transmission”,
“She´s Lost Control”, “Love Will Tear Us Apart”, “Isolation”, “Heart and Soul”, “Passover”,
“Twenty Four Hours” e “Atmosphere” (alguns, como o emblemático
“Atmosphere”, constantes apenas de compilações póstumas). Com a sua morte,
estava resolvido o dilema que o dividiu até ao desespero, entre uma vida dedicada
à família e confinada à vilória de Macclesfield, por um lado, e a
transcendência de uma existência superior, sem fronteiras de espaço e tempo, ao
serviço da música e da poesia e sobretudo de milhões de almas que o continuaram
ou passaram a ouvir para sempre, por outro lado.
Closer acabou por ser editado já depois do suicídio de
Curtis, exibindo na capa a imagem de uma lápide de cemitério que, tendo sido
concebida antes deste, era já um sinistro prenúncio da fatalidade que estava
iminente. Decorridos quarenta anos sobre a morte de Ian Curtis e do álbum
testamento que foi Closer, agradeço,
como muitos milhões pelo mundo fora, o sacrifício que através dela se consumou.
Sem ela e o final prematuro dos Joy Division anunciado por Closer, talvez a história tivesse sido outra. Talvez não sentisse a
premência de continuar a ouvi-lo em grande parte das minhas seleções musicais
desde então, de continuar a preferir a claustrofobia de um som denso e abafado
ao fogo-de-artifício de um refrão fácil e escorreito. Talvez não gostasse tanto
do trip-hop de Bristol da década de 90 ou dos Radiohead de Thom
York que entraram pelo século XXI. E, claro, a declaração “love will tear us
apart” não me soaria tão dramática, ambígua e atraente.
Diogo, que grande descoberta.
ResponderEliminarRita, fico contente. Para conhecermos melhor os Joy Division para além dos álbuns Unknown Pleasures e Closer e de várias compilações (há temas como o extraordinário "Atmosphere" que só encontras em compilações), vê os filmes Control do Anton Corbijn e o documentário "Joy Division" que está no Filmin.
ResponderEliminar* Sorry, para conheceres melhor :-)
ResponderEliminarVou ver. Obrigada.
EliminarCAGRANDA PINTA DIOGO! Estou em falta, é sabido, mas em breve darei notícias musicais.
ResponderEliminarVamos a isso. Amanhã espero ter tempo para avançar com os próximos capítulos :-)
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