27 de maio de 2020

A Nostalgia do Esterco


E outros pensamentos enquanto via o “The Deuce”


“Vocês, cabrões, divertiram-se tanto que a culpa do mundo estar como está é da vossa geração.”
Ela se calhar tem razão. Mas que raio havíamos de fazer, depois de anos de miséria, ou frugalidade na melhor das hipóteses, de memórias de guerras e holocaustos, de décadas de hipócritas morais que sancionavam vícios privados ao lado de beatas virtudes públicas?
O que havíamos de fazer quando, por momentos no pós guerra, o estado social, a redistribuição e o acesso à educação abriram as portas das cercas sociais que nos arrebanhavam—para sempre, diziam os mais velhos—e acreditámos tudo ser possível? E tudo era o dinheiro, a arte, o sexo, a liberdade e o individualismo; e com o individualismo, a propriedade e o arbítrio; e a soberania sobre a mais básica das nossas possessões, o corpo. Fodemos tudo? Não sei. Não sequer sei se fomos nós. Fodemos a nossa saúde, isso sei. O resto fodeu-se por si. Nós apenas elevamos o individualismo a valor primordial, ao contrário dos modernos, que o estipulam como direito inalienável e escrito na pedra—mesmo quando se organizam em rebanho ululante, pretensamente colectivista, mas apenas um rebanho de identidades, individualidades paradoxalmente iguais.
O desabafo millennial deu-se enquanto assistíamos ao The Deuce, e era, sobretudo, inveja da festa. Sentimento legítimo e compreensível perante o meu sorridente comentário “As coisas eram mesmo assim”. Mas aquela festa, que começou nos anos 70 e terminou no fim dos 80, uma festa crua, rija, feita de arte, moda, dinheiro, carros, sexo, drogas, funk, disco, punk, new wave, pop e rock n roll, não volta mais. 

"Some of it happened. Some of it didn't happen. Some of it might have happened. But all of it could have happened” disse David Simon, o autor do The Deuce, referindo-se às histórias das três temporadas. A primeira passada em 1970/71, a segunda em 77/78 e a terceira em 84/85. As histórias são sobretudo personagens, personagens que fluem, slice of life. Não há um enredo, definido canonicamente como um personagem e uma situação por resolver. Há apenas o Deuce, aquele pedaço da rua 42 outrora porco, decadente e vibrante. Ou seja, há muitos enredos.
David Simon é um dos dotados. Escreveu o The Wire, Treme, The Deuce e a belíssima adaptação do Plot Against America do P. Roth. O homem foi jornalista e depois argumentista. Sempre escritor. O formato ficção, que adoptou, é do melhor realismo que já vi escrito e filmado. Os temas são da vida na cidade, aqueles que o jornalismo já não trata, porque não pode, porque se tornou irrelevante.
"I've become increasingly cynical about the ability of daily journalism to effect any kind of meaningful change. I was pretty dubious about it when I was a journalist, but now I think it's remarkably ineffectual" diz Simon em 2004, quando se deu conta de que o jornalismo havia abdicado da sua função de olhar o mundo, as esquinas e as ruas.
Hoje, o jornalismo está ainda mais longe das esquinas. É ficção mal escrita, entretenimento pobre, sobretudo encomendado, ou então filme de catástrofe, quando a natureza ajuda a produção; mas no dia-a-dia, mesmo durante a catástrofe, apenas caixa de ressonância de interesses que o manipulam e alimentam. Valha-nos a ficção, que é quase tudo o que nos resta para entender o que se passa.

Na 3ª temporada do The Deuce, a grande festa—e a estupefação, e o crime e as doenças do excesso que inevitavelmente com ela partilham o ecossistema—acaba em tragédia: o Deuce é limpo. Nascem escritórios, hotéis, apartamentos caros, ruas limpas cruzadas por diligentes funcionários; nasce o tempo que hoje vamos vendo acabar. As putas são varridas para longe, os chulos tornam-se irrelevantes com o advento dos pagers e da electrónica, a indústria pornográfica metamorfoseia-se e foge para oeste, os protagonistas do lugar morrem de sida, suicidam-se, são assassinados ou, o que é mais trágico depois de anos de enérgicas e vibrantes meias vidas noturnas, envelhecem e decaem em memórias. Outros, longe da história, tornam-se protagonistas da gula pós histórica, tomam conta do lugar e enchem-se. E nós, os que pela segunda vez nas nossas vidas assistimos àquilo, agora em forma de ficção, entristecemos com o fim; estranhamente nostálgicos da porcaria, do crime, do excesso, das drogas, das doenças, da violência, dos nossos Deuces, e da imensa vontade de viver, fazer, mudar e criar que todo aquele esterco em nós estimulava.


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