21 de maio de 2020

Cinemateca: três doces sobressaltos

A Cinemateca Portuguesa abriu uma diferente sala de projecção. Desfilam palavras e palavras que falam de imagens. O Nuno Sena convidou-me e eu, que à Cinemateca nada recuso, juntei textos e fiz esta colagem. Parece quase novinha em folha.

Cinemateca: o meu jantar de despedida, com o Cintra Ferreira nos seus sonhos, o João Bénard e eu em ameno jogo de mãos, o José Manuel Costa virado a esquerda


No princípio não era só o Verbo. Era o Verbo e era a Lata em que se enrolava, como a coleante víbora do paraíso, o nitrato ou acetato do filme. Naquele tempo, em verdade, verdade vos digo, a Lata era o Pão de que se alimentavam as nossas descuidadas bocas. No princípio, nesse verdadeiro Génesis, que foi o nascimento da Cinemateca Portuguesa – rabinato e papado que me perdoem –, a Lata, a sagrada Lata fazia o papel do Pai Celestial que provê aos biquinhos das aves do céu e faz crescer os lírios do campo. A Lata era o Verbo, a sala de cinema o seu templo.

Lembro-me de ter ouvido, não sei se há dias, se há vinte anos, uma professora com um decote deleuziano a falar da sala de cinema, espaço e tempo e coisa e tal. O decote cerzia a sala toda em rizomas, suspensão e movimento. Deixo-me morrer devagarinho nesse decote desconstrutivista e, já de olhos fechados, recordo três doces sobressaltos épicos da minha pequena vida de programador de cinemateca.

Um espectro que assombra a humanidade

De repente, com a boca a saber-me a madalenas, lembro-me do Grande Auditório da Gulbenkian na noite em que, mil e duzentas pessoas a transbordar das cadeiras, balcão e plateia em overbooking, o João Bénard subiu ao palco para apresentar, em sessão dupla, o Nosferatu de Murnau e o Nosferatu de Herzog.

Nosferatus, o de Herzog, à esquerda; o de Murnau, à direita

Era a Cinemateca transplantada para a Gulbenkian e parecia o costume, uma sala contente de o ver e ouvir, à espera de imagens e de movimento. Veio o escuro e veio a avassaladora mudez do filme de Murnau, num tempo em que as cinematecas ainda projectavam filmes mudos sem música. A surpresa do total silêncio para uma plateia sem hábitos desse cinema, sem o hábito dos gestos desmesurados de Max Schreck o mais nosferatu, o mais vampiro que um actor algum dia se deixou filmar, fez a sala tossir, pigarrear.

Normalmente, abafados pela banda sonora, no cinema não nos ouvimos. Ali, a sala ouvia-se: mexer o rabo na cadeira ouvia-se, engolir ouvia-se, bater as pestanas também. E a sala, nervosa de se ouvir, frente a um ecrã de sombras, medo e silêncio, começou a rir-se. Foram os primeiros vinte minutos de cinema mudo mais memoráveis, caóticos e irrespeitosos de que me lembro: até que o filme de Murnau, sinfonia silenciosa, raptou os risos, as gargantas e os catarros, os rabos inquietos e, dos anos 80 em que estavam, levou os espectadores para os anos 20.

Nada se compara à experiência que é o espectáculo de uma sala a render-se a um filme, uma sala a descobrir o sublime em gestos que, sem a confiança da entrega, seriam ridículos, mil e duzentas pessoas desconhecidas, odiosamente diferentes, com o sangue gelado pela nocturna silhueta de um vampiro que só pode ser vencido pela gloriosa luz da aurora. Uma sala e é a humanidade toda junta, irmanada, no canto escuro, esconjurando os mais assombrosos espectros.

Tinham mães que os amavam

E saio da Gulbenkian. Chama-me à sala da Cinemateca, Luís de Pina, que por ser dela director era meu director também. Chego e vejo que a calva e resplandecente cabeça de Luís de Pina paira sobre um tormentoso mar punk.

Já voltaremos à sua cabeça. Antes, deixo-vos com uma pérola de filosofia social: desiludam-se os proactivos, não cria comoções sociais quem quer e, às vezes, nem quem pode.

O João Bénard concebera um megalómano Ciclo do Cinema Musical. Sonhávamos com plateias a cantar e dançar o Singin’ in the Rain. Entre as obras-primas escolhidas para ovação e aclamação, o João deixou escorregar um filme mais recente, piscadela de olho a uma minoria juvenil, que se vestia de negro e primava pelo brilho metálico.


The Great Rock ‘n’ Roll Swindle (Julien Temple, 1980)

Era o The Great Rock ‘n’ Roll Swindle e foi programado para a então única sala da Barata Salgueiro, de uns compostinhos 250 lugares. O que aconteceu foi tudo menos composto. O filme era o dos alucinantes Sex Pistols de que faziam parte o malcriadíssimo e mal-cheiroso Johnny Rotten e o negramente lendário Sid Vicious.

De repente, duas da tarde no arabizante palacete da Cinemateca, da rua emergem vagas também malcriadíssimas e mal-cheirosas. Onda a onda, iam-se acastelando miúdos e miúdas de furiosos cabelos espetados, farpas negras ou de cores néon, mil brincos a rasgar orelhas. Vestiam de negro, um negro que de luto nada tinha.

Comiam pastéis de bacalhau, arroz que a mãe de algum fizera (tinham mães que os amavam, claro), e bebiam litrosas de tinto. Punks. Estávamos, até à rua, inundados de punks. Já tínhamos visto meia-dúzia. Descobríamos que eram um exército e não cabiam no cinema.

A Cinemateca não tinha telhados de vidros, mas eram de vidro as portas da sala. A pressão das botas negras da infantaria punk fez-se sentir. O nosso porteiro teria pouco mais de metro e meio. A ele podia eu gabar-me, mas não muito, da minha altura; voluntariei-me para parlamentar à massa ululante. Observaram-me com curiosidade entomológica: um coro de arrotos e outros flatos fez-me recuar.

Com o seu amável corpanzil de Robert Mitchum, surgiu o Luís de Pina. Olhar e palavras doces, apelou à compreensão ciclónica dos punks portugueses. A um ligeiro movimento de alívio e aparente conciliação seguiram-se ultrajantes manifestações de alegria que compreendiam homéricas cuspidelas e – volto a ver aqui a calva cabeça – uma escura bota a cruzar os ares, visando o meu director. Não sei o que é que eles respiravam, mas os vidros ficaram aflitos e embaciados e o da bilheteira estalou com estrondo. A alegria punk é assim, física, corporal, sem dualismos cartesianos: o corpo é a alma. Chegou a polícia, o sossego do cassetete.

As primeiras imagens do filme mandaram a sala ao chão. O que lá dentro se berrou, lá dentro ficará para sempre, e o triunfo da escatologia que se seguiu teve de ser lavado durante uma semana. Sim, era o público entregar-se, espontâneo, a um filme! Não há doutor nem engenheiro social que invente uma comoção daquelas.

Ave-maria cheia de graça

E volto ao decote deleuziano. Sai dele, como a língua do Espírito Santo, Jean-Luc Godard, exemplo supremo da alta costura francesa. Filmou, da Virgem Maria, uma estranha anunciação. Chamou-lhe Je vous Salue, Marie e não há, no Portugal de 1985, distribuidor que lhe pegue. Pegou-lhe a Cinemateca que o está já a exibir. Entremos na sala.

Je Vous Salue, Marie (Jean-Luc Godard, 1985)

Entrámos e veja-se: o caldo entornou-se. Um jovem católico virou-se para o chefe de polícia e disse-lhe em tom de desgarrada: “Gostava que fizessem isso à sua mãe?” Ó meu amigo, palavras não eram ditas e já o até então polidíssimo agente lhe enfiava uma gravata que, vi eu, fez o ar dos pulmões do jovem bater no tecto da sala.

Tossia ele, tossia toda a velha sala da Cinemateca. Krus Abecassis, lendário presidente da Câmara, prometera escaqueirar tudo se a Cinemateca se atrevesse a exibir o filme. Fomos perguntar ao João Bénard, que era quem mandava em nós, se nos atrevíamos. O João foi claro: “Nessas coisas sou uma senhora séria. Ora, como sabem, senhora séria não tem ouvidos.”

Preparámo-nos para o combate. Se de algum lado estava, a Graça estava do nosso lado. João Bénard era de um catolicismo doce que lhe impregnou o olhar e a escrita toda a vida, logo a ele que, tanto mudando, em nada de essencial algum dia mudou. Sentíamo-nos, por isso, legitimados para passar um filme que mostrava o desejo de gravidez e o bendito ventre cujo fruto talvez fosse Jesus.

Éramos democratas, mas não éramos parvos: armou-se um dispositivo de Aljubarrota. Vigilância da PSP e dois dos nossos projeccionistas, o Grave e o Gigante, tipos que combinavam volume de boxeur com altura de defesa-central, a filtrar entradas no rendilhado portão da rua. Vendiam-se dois bilhetes por pessoa, o que frustrou as encantadoras virgens que quiseram comprar a lotação do cinema.

A sala era um ovo cheio. Gente no chão e no ar uma dúbia excitação, misto de primeira comunhão e noite de núpcias. Fez-se escuro: a volúpia das imagens aflorou a tela e os jovens católicos pularam em ave-marias e salve-rainhas, subindo ao palco a esbracejar contra as sombras blasfemas.

As luzes reacenderam-se iluminando um belo e poético caos. Enquanto nós gritávamos aos jovens Savonarolas que Je vous salue, Marie era a apologia da Imaculada Conceição, um filme sobre o mistério da mulher que, entre tormento e dúvida, aceita uma violenta graça e sobre o homem, José, que se torce de ciúmes, mas por amor confia, os velhos cineclubistas, com danada nostalgia comunista, apontavam à polícia os insurrectos: “É aquele… e aquele.” Era um mundo às avessas: velhos esquerdistas bufavam à polícia e um miúdo, com vozinha de copo de leite, gritava-lhes: “Pides.”

Num arroubo místico, um dos rapazes desmaiou. Ajoelhou-se ao lado dele uma menina de calças de xadrez. Era bonita e parecia que, segurando-lhe a mão, rezava. Com vontade de rezar com ela, ainda pensei: “Vês, meu anjo, como ser virgem é estar disponível!”

Saberia ela que, assim, na sua ajoelhada angústia, rimava com a imagem de Myriem Roussel no filme apóstata de Godard, repetindo prosaica e séculos depois, o poético mistério mariano?

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