14 de maio de 2020

Contributo para uma teoria do regresso do beijo


O nosso Manuel S. Fonseca já aqui disse tudo sobre como o cinema beija melhor do que a literatura, e de como se começou a beijar de boca aberta no cinema. Mas o primeiro beijo da história do cinema foi este, de boca bem fechada, que na imagem abaixo se expõe, trocado entre John C. Rice e May Irwin no filme "The Kiss", rodado em 1896 por William Heise para o estúdio de Thomas Edison. Apesar da inocência do beijo e a falta de sex appeal dos protagonistas em nada incitarem a inflamação de desejos eróticos, a verdade é que foi aí, também, que, em nome da vigilância da moral e bons costumes, a censura se começou a manifestar na sétima arte. Nos editoriais dos jornais da época, houve mesmo quem pedisse a intervenção da polícia, alegando que o “prolongado pastar nos lábios um do outro já seria difícil de suportar em tamanho real” e que “aumentado para proporções gigantescas se torna absolutamente repugnante” (sic).
 
Parece que a polícia achou por bem não intervir e, a partir daí, foi um ver-se-te-avias de beijos em tudo o que era lugar público. O beijo público democratizou-se e, de último reduto da intimidade da vida privada ou nem isso, passou a sinal de afirmação de modernidade. Sabe-se hoje que os que mais se distinguiam nos beijos em público eram os que menos a praticavam em privado. E ignoravam de todo o que era beijar bem – pouco importava se beijavam bem ou mal e o efeito que provocavam ou não no parceiro, o que interessava, sim, era mostrar ao mundo que o faziam.

Mais de 120 anos depois, muita coisa mudou na matéria. Já antes da pandemia que proibiu o beijo, o beijo público (de boca, aberta ou fechada, bem entendido) caíra em completo desuso. Bastava percorrer os lugares públicos então povoados da cidade – esplanadas, jardins, cafés, bares, restaurantes, qualquer rua ou praça – para o constatar. No que toca a beijos, pouca diferença parece haver entre os nossos lugares e aqueles de outros regimes onde as manifestações de afeto estão vedadas em público. Ninguém beija em lado nenhum à vista de olhares de terceiros. E quando beija logo se apontam os dedos acusadores. Não deixa de ser estranho que isso se passe numa sociedade onde se tornou um hábito a exposição da intimidade nas redes sociais.

Talvez se assista ao fenómeno contrário daquele a que o primeiro beijo de Rice e Irwin deu azo. Talvez já ninguém precise de afirmar o que quer que seja através do beijo em público. Talvez se beije muito e bem em privado, ao contrário daqueles tempos. Ou talvez haja mesmo um défice de beijos, em público e em privado.

O que parece preocupante é que se ouçam vozes a clamar pelo fim absoluto do beijo em público – do social e, por arrastamento, de todos os outros que o pudor já quase fizera desaparecer. Dizem essas vozes que esse, entre outros, será um hábito que nos ficará para sempre das regras de distanciamento que agora nos são impostas. Eu, que faço parte da metade otimista da humanidade, prefiro encarar esta malha apertada de proibições em que vivemos não como uma ameaça, mas como uma oportunidade. Uma oportunidade que, pacientemente, aguarda o seu momento de cobrança de uma dívida de décadas e décadas, e de dias e meses que agora parecem anos, de todos os beijos que, em nome da “moral e bons costumes”, pudor, conservadorismo, ou simples proibições sanitárias, ficaram por dar. Como se voltássemos todos ao primeiro e primitivo beijo, ao beijo ingénuo de Rice e Irwin.

4 comentários:

  1. vozes de burro não chegam ao céu...ainda bem

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    1. Há sempre um ditado popular a proteger os que ousam (nos beijos e não só):-)

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  2. Beijar?!?!?! Nao é sequer uma questao de bem, nem mal! É sempre que posso e me deixam, meu caro Diogo!

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  3. Vamos acreditar pelo menos que, quanto mais os proibirem, mais os haverá em privado :-)

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