O nosso Manuel
S. Fonseca já aqui disse tudo sobre como o cinema beija melhor do que a
literatura, e de como se começou a beijar de boca aberta no cinema. Mas o
primeiro beijo da história do cinema foi este, de boca bem fechada, que na
imagem abaixo se expõe, trocado entre John C. Rice e May Irwin no filme "The Kiss", rodado em 1896 por William
Heise para o estúdio de Thomas Edison. Apesar da inocência do beijo e a falta
de sex appeal dos protagonistas
em nada incitarem a inflamação de desejos eróticos, a verdade é que foi aí,
também, que, em nome da vigilância da moral e bons costumes, a censura se
começou a manifestar na sétima arte. Nos editoriais dos jornais da época, houve
mesmo quem pedisse a intervenção da polícia, alegando que o “prolongado pastar nos lábios um do outro já
seria difícil de suportar em tamanho real” e que “aumentado para proporções gigantescas se torna absolutamente
repugnante” (sic).
Parece
que a polícia achou por bem não intervir e, a partir daí, foi um
ver-se-te-avias de beijos em tudo o que era lugar público. O beijo público
democratizou-se e, de último reduto da intimidade da vida privada ou nem isso,
passou a sinal de afirmação de modernidade. Sabe-se hoje que os que mais se
distinguiam nos beijos em público eram os que menos a praticavam em privado. E
ignoravam de todo o que era beijar bem – pouco importava se beijavam bem ou mal
e o efeito que provocavam ou não no parceiro, o que interessava, sim, era
mostrar ao mundo que o faziam.
Mais de
120 anos depois, muita coisa mudou na matéria. Já antes da pandemia que proibiu
o beijo, o beijo público (de boca, aberta ou fechada, bem entendido) caíra em
completo desuso. Bastava percorrer os lugares públicos então povoados da cidade
– esplanadas, jardins, cafés, bares, restaurantes, qualquer rua ou praça – para
o constatar. No que toca a beijos, pouca diferença parece haver entre os nossos
lugares e aqueles de outros regimes onde as manifestações de afeto estão
vedadas em público. Ninguém beija em lado nenhum à vista de olhares de terceiros.
E quando beija logo se apontam os dedos acusadores. Não deixa de ser estranho
que isso se passe numa sociedade onde se tornou um hábito a exposição da
intimidade nas redes sociais.
Talvez
se assista ao fenómeno contrário daquele a que o primeiro beijo de Rice e Irwin
deu azo. Talvez já ninguém precise de afirmar o que quer que seja através do
beijo em público. Talvez se beije muito e bem em privado, ao contrário daqueles
tempos. Ou talvez haja mesmo um défice de beijos, em público e em privado.
O que
parece preocupante é que se ouçam vozes a clamar pelo fim absoluto do beijo em
público – do social e, por arrastamento, de todos os outros que o pudor já
quase fizera desaparecer. Dizem essas vozes que esse, entre outros, será um
hábito que nos ficará para sempre das regras de distanciamento que agora nos
são impostas. Eu, que faço parte da metade otimista da humanidade, prefiro
encarar esta malha apertada de proibições em que vivemos não como uma ameaça,
mas como uma oportunidade. Uma oportunidade que, pacientemente, aguarda o seu
momento de cobrança de uma dívida de décadas e décadas, e de dias e meses que
agora parecem anos, de todos os beijos que, em nome da “moral e bons costumes”,
pudor, conservadorismo, ou simples proibições sanitárias, ficaram por dar. Como
se voltássemos todos ao primeiro e primitivo beijo, ao beijo ingénuo de Rice e
Irwin.
vozes de burro não chegam ao céu...ainda bem
ResponderEliminarHá sempre um ditado popular a proteger os que ousam (nos beijos e não só):-)
EliminarBeijar?!?!?! Nao é sequer uma questao de bem, nem mal! É sempre que posso e me deixam, meu caro Diogo!
ResponderEliminarVamos acreditar pelo menos que, quanto mais os proibirem, mais os haverá em privado :-)
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