fotografia de Maria Costa
série Cais do Sodré, Outubro 2019
O Homem
do Capuz sempre teve uma fixação por montras. Pelo menos desde que usa o capuz
que lhe dá nome. Ou desde que fez da rua a sua casa, e um alpendre contíguo a uma
montra o seu abrigo. O Homem do Capuz gostava de acreditar que esse seu amor
por montras era correspondido. Que elas se engalanavam para ele e só para ele. Todas
as segundas-feiras eram motivo de festa para o Homem do Capuz. Era o dia em que
as montras, todas as montras da rua, depois de uma noite com as púdicas
cortinas corridas a esconderem a nudez de um duche retemperador, mudavam de visual.
Às vezes não mais do que um simples retoque de baton ou uma subtil pincelada de
cor, é certo. Mas sempre o suficiente para que, ansioso até ao limite da
ansiedade, não pregasse olho na noite anterior, não se desse também o caso de
outros, às primeiras horas da manhã, se apoderarem antes dele da surpresa que
as montras para ele reservavam.
Quando
passou a haver montras a mais na rua onde assentou arraiais, e muita gente a
olhar para as montras que sentia como suas, uma infinita tristeza tomou conta
do Homem do Capuz. Uma montra de que muitos gostassem não podia ser sua. Uma
montra que não lhe guardasse um lugar exclusivo na primeira fila não podia ter
por ele sentimentos à altura daqueles que, devota e fervorosamente, lhe dedicava.
Para não ser sujeito ao sofrimento diário da traição, foi para outra freguesia
onde houvesse montras. Mas, invariavelmente, de freguesia em freguesia, o fenómeno
repetia-se: qualquer montra desconhecida a que ele se apegasse, em dois tempos passava
a merecer as atenções de uma multidão acotovelada.
Até que
a pandemia tirou toda a gente da rua. Por lá ficou apenas o Homem do Capuz, que
não conhecia outra casa que não fosse a das montras e a das ruas por elas
embelezadas. E, de um momento para o outro, todas as montras que despudoradamente
tinham traído o seu amor, deixaram de ter sobre elas os milhares de olhos e dedos
apontados que lhes vinham dando uma fama nunca imaginada nos tempos em que só o
Homem do Capuz, e mais meia dúzia de outros igualmente dedicados, para elas
olhavam. Remetidas ao esquecimento de uma cidade confinada, só o Homem do Capuz
foi capaz de as salvar do abandono. Não esquecendo todo um mundo de emoções que,
noutros tempos, também o salvou a ele do abandono, o Homem do Capuz voltou ao
lugar do qual só a fama efémera e ilusória das montras o tirou. Pouco lhe
importa que, agora, já não haja cortinas corridas, duches retemperadores e
mudanças de visual uma vez por semana. Em cada dia descobre retoques e pinceladas que ao seu olhar
ansioso de antes tinham passado despercebidos. Do seu lugar na primeira fila já
ninguém o vai tirar outra vez.
O teu homem do capuz mereceu cá uma ilustração....😋
ResponderEliminarRita, o meu texto é que é ilustração da fotografia. Sem a fotografia, não haveria texto.
ResponderEliminarIsso nao é bem assim: o texto vive bem sem a fotografia e a fotografia sem o texto.
EliminarSao duas entidades autónomas que justas crescem.
Havia um gajo, que traduziu isso muito bem, chamava-se Christopher Alexander, e escreveu A Cidade nao é uma Árvore, referia-se às redes, mal podia adivinhar o excesso de razao que tinha: O todo é mais que a soma das parte; era matemático o cavalheiro.
Guilherme, o objetivo do meu comentário acima era mesmo enaltecer o trabalho da fotógrafa :-) Mas o teu, na verdade, valorizando o texto, também não valoriza menos o da fotógrafa. Obrigado pela minha parte e da fotógrafa :-)
Eliminaruma imagem muito forte seguida de uma narrativa criativa, especial.
ResponderEliminarAna, a imagem já diz tudo. Eu só tive um papel secundário, o de traduzir para a linguagem escrita o que já lá estava.
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