12 de junho de 2020

Vaidade e presunção, e não me arrependo.

revista Fluir, revista digital de literatura e artes, entrevistou-me, na minha lamentável condição de editor, para o seu número 5. A revista, que é dirigida por José Pacheco, já existe desde Setembro de 2018 e tem colaborações admiráveis. Quem me entrevistou foi a Ana Cristina Marques. Deixou-me de cara à banda quando me disse que Arturo Pérez-Reverte, num dos seus romances, fala em Lisboa com um editor português chamado Manuel Fonseca, cuja maior virtude, interpreto eu, é a sua bela e álacre mulher.  Eis a única coincidência. Seguem-se sete respostas a sete perguntas.
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O editor em animada e hilariante actividade. Na foto, além do editor rouge, Pedro Norton, Fernando Alvim, Pedro Bidarra e Henrique Monteiro
Vaidade e presunção, e não me arrependo
Entrevista de um editor

A edição em Portugal compensa, ou é um esforço vão, ou obriga a mentir-se a si mesmo?

Compensou a Ulisses ter ido a Tróia, ter sido cativo dos Ciclopes, amarrar-se a um mastro para escutar a voz Teresa Salgueiro das sereias? Eis a razão pela qual ando nisto, voltar de consciência tranquila a reencontrar Penélope todas as noites e ganhar um dia a improvável imortalidade. É o que se leva da caverna editorial, que dividendos, viste-os – em 14 anos, zerinho, zero euros!
Se pudesse escolher, teria preferido ser um editor no estrangeiro, ou continuaria a sê-lo entre nós?
Mal deixei de gatinhar, tinha eu cinco aninhos, deslarguei-me deste jardim à beira Atlântico plantado. Quis ser um Europeu errante em África. Voltei, com o rabo entre as pernas e um queixume brando. Seria ingrato negar agora, como Pedro três vezes a Cristo, a Pátria que me voltou a abrir os braços. Até porque houve um erro em que nunca laborei: nunca desertei da língua portuguesa em que edito. Essa língua é o fio de Teseu, e um bocadinho de tesão, que me leva por este borgesiano labirinto de falas, escritas, livros, babélicas estantes, unindo o miúdo que gatinhava a esta terceira idade em que agora moro. Não saberia estar de pé em nenhuma outra língua. 
E o que se faz é sobretudo apostar no que garantido, ou é possível dar a conhecer obras novas?

Mais do que apostar, quis inventar. No melhorzinho que porventura tenha feito estão alguns livros que inventei. Inventar um livro para Agustina juntando-a a Paula Rego, inventar com a Dona Mécia um livro de um Sena de escárnio e mal dizer involuntariamente ilustrado pelo próprio, atribuir a Pessoa o seu As Flores do Mal, inventar nos Livros Amarelos a rara, ou talvez única, colecção comparativa do mundo. E se os deuses deixarem que eu tenha descoberto um poeta – peço-vos que leiam Eugénia de Vasconcellos e logo João Moita – um filósofo, um romancista, aí está o que me poria de debruçado Narciso sobre o primeiro charco de água num primaveril dia de chuva. 

Considera-se um escritor que, paralelamente edita, ou um editor que, por vezes, também se quer dedicar à escrita?

Eu desconsidero-me. Já se viu pelas respostas anteriores que deambulo como gado transumante pela pastagem editorial. A escrita é uma leveza nefelibata, que um livro de devoção, tantas vezes lido em voz alta pela minha mãe, Alice Amália, ainda hoje me inspira. Eu sou um caso perdido de derrame melodramático, empolgam-me histórias de mártires, de barcos arrebatados pelas gigantescas ondas de homéricas tempestades, de náufragos seminus em ilhas tropicais. E que saudades tenho do herói que nos dias de adolescência prometia a mim mesmo ser. Já se vê, que sou um caso óbvio de incumprimento.
O que o levou a tornar-se editor? Trace-nos em algumas palavras a aventura que terá sido a génese da Guerra e Paz.

Aprendi a fazer livros com João Bénard da Costa, na Cinemateca. Quando deixei a SIC, num acordo que os deuses inspiraram a Francisco Pinto Balsemão, decidi que já tinha uma linda idade para fazer da minha tão proveitosa vida o que bem entendesse. Juntei um mais um e deu dois, eu e a Guerra e Paz. Cá estamos. Foi vaidade, presunção e muita amizade. Os meus primeiros sócios foram os meus amigos de infância.
Há um romance (O Franco-Atirador Paciente, de Arturo Pérez-Reverte) em que o autor o transforma numa personagem. Como se sente ao ver-se representado nas páginas de um livro? Essa personagem revela alguma coisa do homem Manuel Fonseca e da sua circunstância, ou é uma mentira? E se alguém se propusesse passar a obra para cinema, aceitaria fazer o papel?

Quem é esse editor de que Arturo Pérez- Reverte fala? “O” editor, em sentido abstracto? Eu mesmo, Manuel, o que muito me honraria por não conhecer Arturo, nem ele me conhecer a mim, o que suporia uma maravilhosa intriga, na qual Trump e Putin teriam de estar certamente envolvidos? Seja como for, eu, como actor, só entrarei num filme realizado pela vossa colaboradora Joana Pontes, a única a quem confiaria o supino talento dramatúrgico que ainda ninguém descobriu em mim.
O que tem a Guerra e Paz na manga?

Gostava de anunciar um romance de António Lobo Antunes, mas a editora dele era capaz de levar a mal. Anuncio a Fotobiografia de Jorge de Sena. E, muitíssimo a sério, anuncio um livro político e filosófico essencial: vou publicar um livro de um sinólogo, Porquê a Europa, Reflexões de um Sinólogo, que tem tudo que ver com o mundo em que um vírus nos fez entrar: se o mundo que aí vem vai ser liderado pela China, o que é verdadeiramente a China? Que violência intestina é a sua, que feridas e guerras arrasta do passado? É um livro a que fiquei preso como a uma inescapável tragédia ficaria também.

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