Zé Manduca era o caseiro dos
meus avós. Era um touro de força. E igualmente bruto.
A sua primeira tarefa do dia era
ordenhar as vacas. Elas gostavam dele. Deixavam-se estar, tranquilas, enquanto
ele as aliviava do excesso. Antes de seguirem para o pasto, havia sempre uma
que se despedia com turras e encontrões que ele retribuía. Essa acabou por
morrer no colo dele com um vitelo entalado. Trazia o leite ainda quente para o
pequeno almoço dos patrõezinhos – o meu Pai e os seus quatro irmãos. Se não
tivesse sobrado manteiga, pescava-se a nata com o dedo e comia-se no pão. Nas
mãos dele, as bilhas até pareciam vazias. Num desafio de machos jovens, um dos meus
tios tentou levantar uma. Nem se mexeu. A partir daí, Zé Manduca passou a
herói. Mas quando bebia, metia medo. Bom tipo, mau vinho.
Desaparecia o resto do dia, nas
suas tarefas de Hercules açoriano. Só se ouviam os latidos do Cara Negra,
marcando os cantos da quinta, trotando no seu encalço como se fosse o dono.
Os meninos cresceram e foram
estudar para o continente. Os meus avós mudaram-se para a Cidade e deixaram a
quinta aos fetos-reais. Fora dela, Zé Manduca estava fora de contexto. Sem
jeito. Ainda lhe deram um lugar na empresa da família. Nunca se adaptou.
Depois veio o progresso. A Cidade
passou a ter semáforos. Abriu o Hiper. Na véspera da inauguração, mais de mil
pessoas pernoitaram no parque de estacionamento. Choveu, como de costume. Um homem
deu uma surra à mulher por ter gasto as economias de uma vida num trem de
cozinha. Era em inox, justificava-se ela debaixo da pancada.
Numas férias grandes, o meu Pai
foi visitá-lo. Encontrou-o velho e cansado de olhar para os pés. Não tinha nada
para fazer. Isso não faz bem à cabeça de um homem. O meu Pai ainda propôs
ensinar-lhe a ler. Disse que não tinha serventia para ele. Tal como ele não
tinha para ninguém.
Alguém disse que o viu saltar da
rocha, chamando às mãos o destino, tão pesado como as bilhas do leite.
imagem Ana Marchand texto Ana Monjardino
gostei muito
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