12 de agosto de 2020

bilhas de leite

 




Zé Manduca era o caseiro dos meus avós. Era um touro de força. E igualmente bruto.

A sua primeira tarefa do dia era ordenhar as vacas. Elas gostavam dele. Deixavam-se estar, tranquilas, enquanto ele as aliviava do excesso. Antes de seguirem para o pasto, havia sempre uma que se despedia com turras e encontrões que ele retribuía. Essa acabou por morrer no colo dele com um vitelo entalado. Trazia o leite ainda quente para o pequeno almoço dos patrõezinhos – o meu Pai e os seus quatro irmãos. Se não tivesse sobrado manteiga, pescava-se a nata com o dedo e comia-se no pão. Nas mãos dele, as bilhas até pareciam vazias. Num desafio de machos jovens, um dos meus tios tentou levantar uma. Nem se mexeu. A partir daí, Zé Manduca passou a herói. Mas quando bebia, metia medo. Bom tipo, mau vinho.

Desaparecia o resto do dia, nas suas tarefas de Hercules açoriano. Só se ouviam os latidos do Cara Negra, marcando os cantos da quinta, trotando no seu encalço como se fosse o dono.

Os meninos cresceram e foram estudar para o continente. Os meus avós mudaram-se para a Cidade e deixaram a quinta aos fetos-reais. Fora dela, Zé Manduca estava fora de contexto. Sem jeito. Ainda lhe deram um lugar na empresa da família. Nunca se adaptou.

Depois veio o progresso. A Cidade passou a ter semáforos. Abriu o Hiper. Na véspera da inauguração, mais de mil pessoas pernoitaram no parque de estacionamento. Choveu, como de costume. Um homem deu uma surra à mulher por ter gasto as economias de uma vida num trem de cozinha. Era em inox, justificava-se ela debaixo da pancada.

Numas férias grandes, o meu Pai foi visitá-lo. Encontrou-o velho e cansado de olhar para os pés. Não tinha nada para fazer. Isso não faz bem à cabeça de um homem. O meu Pai ainda propôs ensinar-lhe a ler. Disse que não tinha serventia para ele. Tal como ele não tinha para ninguém.

Alguém disse que o viu saltar da rocha, chamando às mãos o destino, tão pesado como as bilhas do leite.   

  

                    imagem    Ana Marchand                     texto      Ana Monjardino

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