4 de agosto de 2020

O meu feliz Algarve culpado

 
 
Daqui, só ouço agora, culpado, o som das gaivotas, do grilo e do mar
 
 
Só ouço o som das gaivotas, do grilo e do mar. Há trinta anos, talvez mais até, que não ouvia da varanda de casa o suave murmúrio das ondas do barlavento algarvio. Há trinta ou mais anos que a paz noturna do silêncio do oceano era abafada pelo ruído do progresso. Progresso, era esta palavra, e o livre acesso democrático ao mar que ela transportava, que tudo justificava. Até o sacrifício do som das gaivotas, do grilo e do mar. E é esta mesma palavra, progresso, e todos os sacrifícios que o seu reverso implica, que me faz agora sentir o mais culpado dos seres. Culpado com uma culpa que não senti quando me tiraram, a mim e aos meus felizes companheiros de verão da minha melhor juventude, a utopia prometida pelos dois meses inteiros de julho e agosto que, ano após ano, a todos nos reunia debaixo do mesmo manto protetor de um sol que parecia não ter fim - vindos, uns de Lisboa, outros do Porto ou das profundezas do Alentejo, outros ainda, os poucos que já aqui viviam o ano todo, logo dali da porta ao lado. Nesses anos algarvios de descoberta, todos fomos tocados pela graça dos primeiros amores desencontrados de verão: em algum momento todos os rapazes gostaram da Luísa ou da Patrícia ou da Mafalda e todas as raparigas gostaram do tipo errado, um tipo que só estava de passagem e a quem nós, os rapazes da irmandade de todos os julhos e agostos, encontrávamos sempre algum defeito. Todos fomos levados pela mão invisível da emoção para as festas dançantes em garagens ou a céu aberto, todos vivemos picos de afirmação e amarguras de rejeição, assomos de confiança e crises de insegurança, momentos de euforia e de desencanto, com uma única certeza que nos tranquilizava, a de que nunca nada nem ninguém, em circunstância alguma, nos arrancaria da pele o pacto da fidelidade jurada ao lugar onde todos convergíamos, nesses meses de julho e agosto. O nosso lugar comum, o lugar de onde vinha o mais fundo da felicidade que em nós morava, o lugar que era o único e insubstituível protagonista das histórias das nossas vidas. Um lugar sem tempo, ou com todo o tempo do mundo nele contido, o de um universo, misto de realidade e fantasia, de experiência e de imaginário, um lugar em que toda a liberdade de movimentos era permitida nos curtos quinhentos metros que o circunscreviam, sem outras regras que não as que o comum sentimento de pertença inconsciente e espontaneamente ditava.
 
Até que veio o betão. Primeiro, quase impercetível para ninguém dar por ele. Só uma sombra ligeira a insinuar-se pelas casas, jardins, pátios e descampados por onde a nossa liberdade se espraiava. Uma entrada tímida que, a pouco e pouco, foi perdendo o pudor até invadir, com uma gigantesca mancha, quase todo o espaço da nossa memória coletiva. Subitamente, todo o verão era já passado. Já não lá estavam os sítios das eternas promessas, das juras de amor, dos desencantos tornados encantos, das esperanças tornadas certezas, os sítios onde tudo começou e nos pareciam inamovíveis, feitos de uma pedra que nenhum betão poderia destruir, tal como, antes de nós, sempre o foram para as gerações que nos antecederam.
 
Tudo em nome do progresso, segundo nos disseram. Talvez nos quisessem cobrar a dívida de tantos anos de privilégios e ilusões clandestinas. Muitos não aguentaram o preço e, para salvar a memória de um tempo fundador (de cumplicidades, amizades, amores, até de famílias), partiram para sempre. Outros, como eu, resistiram ao adeus definitivo, na convicção de que, ainda assim, subsistia a esperança de um legado, que passa de pai para filho, que estava por cumprir. E, no íntimo, talvez com a expetativa de que, uma tarde, uma noite, ainda que por breves horas, conseguiriam virar as costas à mancha de betão e voltar a ouvir o som das gaivotas, do grilo e do mar da varanda de casa.
 
E, agora, que finalmente voltei a ouvir o som das gaivotas, do grilo e do mar, que voltei a cheirar a maresia, que voltei a sentir a limpidez do ar e da água, que voltei a ver o horizonte sem sombra, carrego a culpa que antes recusei. Uma culpa de décadas, por ter vivido o que outros não viveram, por ter cravadas na pele memórias felizes onde outros só têm cicatrizes, por saber reconhecer a quietude do silêncio onde a outros só ecoa o ruído que os fez surdos. Agora, que a mancha do betão se tornou invisível, não me larga a sombra do progresso que me roubou a utopia. E, lá dentro, ouço as vozes desesperadas dos filhos do progresso a quem o silêncio das gaivotas, do grilo e do mar tudo rouba.
 
De mão dada com o meu filho na varanda, resta-me a consolação de saber que ele não a sente, a culpa. Que vê, ouve e sente o mesmo do que eu, sem culpa. Onde não há memória, digo-lhe em palavras que um dia haverá de compreender, não há culpa. Consola-me acreditar que talvez o legado dos meus avós e dos meus pais se cumpra. De pai para filho.
 
Praia da Rocha, julho de 2020

5 comentários:

  1. Lindo, Diogo. Onde nao há memória não há culpa
    Para o bem e para o mal 😊

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    1. Obrigado, Teresa. A nossa "casa", aqui, também ficará para memória futura. E talvez nos culpemos de a deixar fugir.

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    1. Obrigado, Rita. É sempre um prazer fazer-te viajar no espaço e no tempo :-)

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  3. Parabéns Diogo. Um forte abraço de Maputo. Um dos irmãos metralhas da praia da rocha. Álvaro Pinto Basto

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