25 de março de 2020

A vida em aberto

Foto de Joana Bourgard


Devemos sonhar novamente com carruagens de comboios,  já que os céus se cansaram de aviões. 
Podemos se quisermos, voltar a deslizar as rodas das malas pelos corredores apertados de um vagão,  alguém na nossa direcção e um tem de ceder, recuar ou avançar, com licença, por favor, desculpe. Gestos e palavras envolvidos no cheiro ácido a linha férrea e o balancé do corpo que começa. Para cá e para lá. É bom que as pernas estejam fortalecidas, ajuda no equilíbrio. O cheiro a linha férrea permite-nos com grande facilidade aceder a uma qualquer memória, a um saudosimo feito de comboios.  

Cheguei finalmente à minha carruagem, abri as portas deslizantes do compartimento com as duas mãos em simultâneo e com curiosidade, estava vazio, por enquanto. Numa viagem de comboio sabemos muito pouco. Não sabemos quanto tempo vamos ficar sozinhos, ou quem nos irá fazer companhia, por exemplo. E que dois exemplos tão determinantes. Já a viagem não é determinante, nem fechada. Está em aberto.
Uma viagem, uma janela, e o mundo lá de fora passa a correr, mil frames por minuto, mil frases por segundos que não se conseguem dizer, apesar do esforço e das tentativas. O corpo continua quieto, apesar do estímulo. A viagem demora-se nestes tempos apressados. As imagens serão sempre a correr, mas o tempo, imagine-se, desacelerou!

É preciso pararmos o tempo para ligarmos Viena a Istambul, ligadas entre si por outro tempo. Estão situadas, por assim descrever, numa coordenada poético-matemática só alcançável para alguns, e sim,  agora também desertas e isoladas como qualquer capital do mundo. Viena e Istambul namoram noutro tempo e agora, mais do que de distância, morrem de saudade. Mas o Expresso do Oriente  continua a existir como sempre existiu para mim,  à distância, numa localização poético -matemática, por assim dizer. 
É uma equação que tento resolver para me consolar em dias de apatia e irratibilidade.

Deixo-me embalar pela percussão da marcha do comboio , lá está - poético-matemática, pela Karenina de Tolstoi, e porque não? É calhamaço suficiente para aguentar uma quarentena ou para me acompanhar na distância que vai de Viena a Istambul, e acalmo-me. O Tolstoi inquieta-me,  mas viro a página. Afinal temos todo o tempo no mundo, ele está parado. Nós parámos e por isso os aviões pararam, as fábricas, as escolas, os restaurantes, os artistas, a produção parou, mas o sol, a lua, os pássaros, as aranhas, os pensamentos, as frases e as imagens por segundo, não pararam. E o comboio, aquele que ainda podemos apanhar está, agora parado, à espera. Vais entrar?

As estações também definem os comboios e não há alívio mais aliviador do que o suspiro demorado e profundo de um comboio a chegar à estação. Há sempre alguém que entra e sai. Há um fim e um começo e isso traduz a simplicidade das coisas difíceis. A viagem ainda assim, continua. Está em aberto.
O comboio tem uma poesia que o avião não tem, mas há que ter tempo - quer para a poesia quer para o comboio, e sobretudo, há que deixar correr o tempo numa viagem em aberto. 

O Expresso do Oriente é o meu ex-libris em viagens demoradas. Pode ser um work in progress, um happenig. A vida em aberto que contrasta com a eficácia e monotonia de um avião - fechado.


4 comentários:

  1. Foi fácil ver a paisagem através da janela.

    ResponderEliminar
  2. Só a geografia dos odores dá uma bela viagem; mas há muitas a fazer de comboio, o Blue Train, o Trans-Siberiano, ...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, há muitas! Vamos fazendo algumas nem que seja através dos cheiros!

      Eliminar

Must