22 de março de 2020

Mal as conservatórias abram...


Meus tristes, enfadonhos do meu coração, sombrios da minha alma, lúgubres dos meus afetos: voltámos! Ou seja, alguns de nós voltaram, os outros estão confinados, que é uma palavra em voga.
Eu estou de quarentena, por causa de um vírus, não sei se já ouviram falar deste problema.
Estou em casa, de onde não saio, a não ser para despejar lixo. E, tal como os astronautas, saio devidamente equipado, de fato espacial, luvas, capacete, máscara. De resto, casa comigo!
A propósito do casa comigo tenho outro problema. Há cerca de 600 anos (talvez um pouco menos, mas os dias iguais entre quatro paredes da minha mansão fazem-me perder a noção do tempo), há mais de meio milénio, pois, casei-me com uma moçoila que hoje reparo não ser tão moçoila assim. Era divertida, engraçada e nada rabugenta, qualidades que foi perdendo à medida que a quarentena avançou.
Antes desta calamidade mal a via. Saíamos cedo para o trabalho e chegávamos tarde do trabalho. Durante cerca de 400 anos (talvez um pouco menos) as filhas ocuparam-nos o espaço e o tempo livre. As filhas, as amigas das filhas, as amigas e amigos das filhas, os namorados das filhas, as roupas e sapatos das filhas, os casacos das filhas. E sim, podíamos, como casal unido que sempre fomos, embirrar com as filhas.
Porém, há cerca de 100 anos, isso terminou. Uma a uma, as filhas bazaram do lar com namorados, amantes, namoridos, conversados - o que fosse - e foram à vida delas. A nossa continuou.
Sair cedo, voltar tarde. Unidos pelo casamento e por certas séries da Netflix não tínhamos razão de queixa um do outro.
Até que veio a quarentena!
Embirramos decididamente um com o outro, que é tudo o que nos resta. Nenhum de nós é capaz de ver um motivo para, em tempos idos, se ter abalançado a unir a sua vida à do outro. Somos corpos estranhos em cama comum.
Mal as conservatórias abram, divorciamo-nos. Ou talvez possamos dar uma oportunidade à Netflix para nos manter juntos e envelhecermos, mais ainda do que já envelhecemos, de mão dada a assistir a séries e filmes na televisão que não entendemos, porque o tempo que passamos a embirrar corta a narrativa, ou lá como se diz agora.
Porém, enquanto o país e o mundo estiverem fechados, resta-nos embirrar. Também não há nada mais divertido para fazer.
Nota: tudo o que acima está escrito é falso, somos um casal exemplar salvo nos casos assinalados. Se não virem ou sabem de nenhum caso assinalado, o problema é vosso.

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