18 de abril de 2020

A grande arte de Rubem




“As descobertas são por acaso? Nunca são por acaso. Cabral sabia muito bem aonde ia. A gente sempre quer descobrir alguma coisa e afinal descobri, depois de muitos dias, naquele dia, quando enfiei o dedo naquele canal viscoso e ardente, que mais parecia uma máquina rudimentar de moer carne, naquele dia descobri algo de espantoso. Era a vagina dentata, dos antigos, que sempre pensei ser uma ficção literária ou uma invenção dos arquitetos da repressão sexual, mas que estava ali à minha mão, roendo meu dedo depois de ter devorado meu pau. A vagina dentata! Céus! Minha alma se encheu de terror. Sendo um anão, e ainda por cima preto, e ainda por cima velho, ainda que não pareça, por todos esses motivos eu não podia dizer a ela “sua vagina dentata está me assustando”, isso um homem, ainda para mais um homem de peculiaridades, como eu, nunca confessa.”
 

Devo a Rubem Fonseca, que esta semana se despediu de uma vida intensa de noventa e quatro anos, a descoberta da Vagina Dentata. E, por via desse achado que o mais aclamado dos seus livros, A Grande Arte, deu ao mundo da ficção, devo também a adoção das prudentes e adequadas medidas de distanciamento social que, ainda a tempo, me livraram, com alguma probabilidade, do risco de ser contaminado de vez pelo maior mito sexual de todos os tempos. Que um tipo se torne um aspirante a exemplar homem de família por causa de um livro soa, evidentemente, a exagero. Sobretudo quando esse livro tem tudo para não ser levado a sério: uma mescla de romance de aventuras de cordel com o maquiavelismo típico de certa banda desenhada, pontuado por cenas dignas dos mais emblemáticos noirs que o cinema produziu, e povoado por personagens improváveis como um anão negro (dá para ter uma ideia do que dele diria hoje a ditadura do politicamente correto), um capitalista nascido de uma relação incestuosa dono de um grande grupo económico que controla um império de narcotráfico, um mestre no manejo de armas brancas (é essa a grande arte que dá título ao livro, a da punhalagem) que acaba vítima do seu próprio veneno, e um número infindável de homens e mulheres de má reputação, meliantes de toda a ordem e demais perdidos e vencidos da vida, por quem aliás o autor nunca esconde o seu ternurento apreço.  

Mas, ainda assim, com ou sem excesso de cautelas, agradeço ao Rubem ter posto o livro no meu caminho na altura certa. Nem muito cedo – quem, como eu, aspirava a fazer carreira na advocacia, rapidamente desistiria desse propósito se conhecesse precocemente o anti-herói advogado Mandrake, quem não quisesse hesitar perante os avanços sedutores de uma linda senhora, não deveria ter a prova ainda em idade juvenil da existência da assustadora Vagina Dentata que o livro revela ao mundo. Nem muito tarde – é sempre prudente saber que elas podem andar por aí e que o caminho da tentação pode ser o da perdição. O que o candidato a leitor do agora imortal Rubem nunca se deve fiar é pelo embrulho de entretenimento que reveste A Grande Arte: se o tem, não é mais do que um pretexto para restituir à literatura o que a “má vida” lhe foi buscar. E, já agora, também para um dos mais brilhantes exercícios de estilo que a literatura de língua portuguesa produziu.

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