“As descobertas são por acaso? Nunca são
por acaso. Cabral sabia muito bem aonde ia. A gente sempre quer descobrir
alguma coisa e afinal descobri, depois de muitos dias, naquele dia, quando
enfiei o dedo naquele canal viscoso e ardente, que mais parecia uma máquina
rudimentar de moer carne, naquele dia descobri algo de espantoso. Era a vagina
dentata, dos antigos, que sempre pensei ser uma ficção literária ou uma
invenção dos arquitetos da repressão sexual, mas que estava ali à minha mão,
roendo meu dedo depois de ter devorado meu pau. A vagina dentata! Céus! Minha
alma se encheu de terror. Sendo um anão, e ainda por cima preto, e ainda por
cima velho, ainda que não pareça, por todos esses motivos eu não podia dizer a
ela “sua vagina dentata está me assustando”, isso um homem, ainda para mais um
homem de peculiaridades, como eu, nunca confessa.”
Devo a
Rubem Fonseca, que esta semana se despediu de uma vida intensa de noventa e
quatro anos, a descoberta da Vagina
Dentata. E, por via desse achado que o mais aclamado dos seus livros, A Grande Arte, deu ao mundo da ficção, devo
também a adoção das prudentes e adequadas medidas de distanciamento social que,
ainda a tempo, me livraram, com alguma probabilidade, do risco de ser contaminado
de vez pelo maior mito sexual de todos os tempos. Que um tipo se torne um aspirante
a exemplar homem de família por causa de um livro soa, evidentemente, a exagero.
Sobretudo quando esse livro tem tudo para não ser levado a sério: uma mescla de
romance de aventuras de cordel com o maquiavelismo típico de certa banda
desenhada, pontuado por cenas dignas dos mais emblemáticos noirs que o cinema produziu, e povoado por personagens improváveis
como um anão negro (dá para ter uma ideia do que dele diria hoje a ditadura do
politicamente correto), um capitalista nascido de uma relação incestuosa dono
de um grande grupo económico que controla um império de narcotráfico, um mestre
no manejo de armas brancas (é essa a grande arte que dá título ao livro, a da
punhalagem) que acaba vítima do seu próprio veneno, e um número infindável de homens
e mulheres de má reputação, meliantes de toda a ordem e demais perdidos e
vencidos da vida, por quem aliás o autor nunca esconde o seu ternurento apreço.
Mas,
ainda assim, com ou sem excesso de cautelas, agradeço ao Rubem ter posto o
livro no meu caminho na altura certa. Nem muito cedo – quem, como eu, aspirava a
fazer carreira na advocacia, rapidamente desistiria desse propósito se conhecesse
precocemente o anti-herói advogado Mandrake, quem não quisesse hesitar perante
os avanços sedutores de uma linda senhora, não deveria ter a prova ainda em
idade juvenil da existência da assustadora Vagina
Dentata que o livro revela ao mundo. Nem muito tarde – é sempre prudente
saber que elas podem andar por aí e que o caminho da tentação pode ser o da
perdição. O que o candidato a leitor do agora imortal Rubem nunca se deve fiar
é pelo embrulho de entretenimento que reveste A Grande Arte: se o tem, não é mais do que um pretexto para restituir
à literatura o que a “má vida” lhe foi buscar. E, já agora, também para um dos
mais brilhantes exercícios de estilo que a literatura de língua portuguesa produziu.
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