Diário - tempo de pandemia - Em Casa 05
Luís Sepúlveda, o tempo, e o Homem Cão
Morreu Luís Sepúlveda. Setenta anos. Uma idade péssima para
morrer. Todas as idades são más para morrer ainda que haja horas boas para
morrer ou décimos de segundos, aqueles em não se aguenta e uma pessoa não
explode nem implode nem morrer consegue, que pena, e que sorte, pois não conseguiria renascer à la carte. O homem ali da frente vem fumar à hora certa. Fuma,
debruça-se e fica. E recomeça. Em 2020, não sei se ainda alguém fuma dentro de
casa. Há gente que nunca deixa entrar o cão. O cigarro é o cão desta época. Na
rua. Não entra, ouviu? Luís Sepúlveda morreu de infecção por corona vírus, o
homem no prédio em frente que fuma no varandim sem medos respiratórios, olha para aqui, imagino que
pense quem é aquela, nunca a vi, de computador, a escrever na cama, mas não
corro as cortinas porque as copas altas em vagas de mar verde de folhas frescas
de chuva e vento agitam-se, iluminam o céu e entram pela janela. Hoje, NunoPacheco, no Público, claro, fala sobre o «ortogravírus», o acordo ortográfico de1990. Fala da solidão dos «infetados», os portugueses, e de uns poucos, decerto, em Bissau, já que no Brasil continuam a ser infectados e pelo mundo dito lusófono a infecção continua com dois cês. Nos
Estados Unidos é bem capaz de ter quatro ou cinco, vi a carrinha da recolha de
corpos a fazer paragens nas casas - Luís Sepúlveda morreu no hospital. Setenta
anos. Um escritor não pode morrer com setenta anos se é aos sessenta, sessenta
cinco que atinge a maioridade na escrita. Não pode, não no século vinte e um. No
passado, extraordinários escritores precoces morreram em idades inconcebíveis
para aquilo que escreveram. Talvez porque então o tempo durasse pouco, havia
páginas de prodígio e uma pessoa ainda hoje pasma diante da grandeza dessa raça
de gigantes caídos aos vinte e tal anos. Trinta. Cinquenta e poucos. Li, não sei
onde, que os físicos atingem o pico de produção antes dos trinta anos. A idade
óptima. É muito cedo. A biologia da fertilidade da mulher também. Quem é que
hoje pode ser mãe na idade óptima para engravidar, aos vinte e três, vinte
cinco anos? Decidi enviar a Nuno Pacheco um poema citrino e acidulado do meu
penúltimo livro sobre o acordo ortográfico, e a poderosa inteligência literária
portuguesa, para lhe dizer que também nesta quarentena linguística estamos
juntos. Ter-lho-ia enviado. Durante um décimo de segundo poderia tê-lo feito. Luís Sepúlveda morreu e
Agualusa comentou. Para morrer é preciso existir entre iguais. Não enviei nem enviarei. Estou farta. Des-existo. Escrevo e isso chega. Leio e existem à minha volta. Talvez os escritores
lidos não morram, afinal. Nem aos setenta nem nunca, talvez apenas deixem de
escrever. Lá está ele, pendurado no varandim de ferro, cigarro entre os dedos,
o homem-cão a fumar por cima das copas das árvores, vagas de folhas frescas e
verdes. Ao fim da tarde, virão os papagaios.
Grande texto Eugénia, gostei muito
ResponderEliminarMuito obrigada, Ana, fico contente que tenha gostado.
EliminarLindo. Que prazer deve ser escrever assim. Só sei do prazer de ler. Quase que me basta. Obrigada
ResponderEliminarMuito obrigada, Naked, o que diz é generoso.
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