16 de abril de 2020

Luís Sepúlveda, o tempo, e o Homem Cão




Diário - tempo de pandemia - Em Casa 05 

Luís Sepúlveda, o tempo, e o Homem Cão 

Morreu Luís Sepúlveda. Setenta anos. Uma idade péssima para morrer. Todas as idades são más para morrer ainda que haja horas boas para morrer ou décimos de segundos, aqueles em não se aguenta e uma pessoa não explode nem implode nem morrer consegue, que pena, e que sorte, pois não conseguiria renascer à la carte. O homem ali da frente vem fumar à hora certa. Fuma, debruça-se e fica. E recomeça. Em 2020, não sei se ainda alguém fuma dentro de casa. Há gente que nunca deixa entrar o cão. O cigarro é o cão desta época. Na rua. Não entra, ouviu? Luís Sepúlveda morreu de infecção por corona vírus, o homem no prédio em frente que fuma no varandim sem medos respiratórios, olha para aqui, imagino que pense quem é aquela, nunca a vi, de computador, a escrever na cama, mas não corro as cortinas porque as copas altas em vagas de mar verde de folhas frescas de chuva e vento agitam-se, iluminam o céu e entram pela janela. Hoje, NunoPacheco, no Público, claro, fala sobre o «ortogravírus», o acordo ortográfico de1990. Fala da solidão dos «infetados», os portugueses, e de uns poucos, decerto, em Bissau, já que no Brasil continuam a ser infectados e pelo mundo dito lusófono a infecção continua com dois cês. Nos Estados Unidos é bem capaz de ter quatro ou cinco, vi a carrinha da recolha de corpos a fazer paragens nas casas - Luís Sepúlveda morreu no hospital. Setenta anos. Um escritor não pode morrer com setenta anos se é aos sessenta, sessenta cinco que atinge a maioridade na escrita. Não pode, não no século vinte e um. No passado, extraordinários escritores precoces morreram em idades inconcebíveis para aquilo que escreveram. Talvez porque então o tempo durasse pouco, havia páginas de prodígio e uma pessoa ainda hoje pasma diante da grandeza dessa raça de gigantes caídos aos vinte e tal anos. Trinta. Cinquenta e poucos. Li, não sei onde, que os físicos atingem o pico de produção antes dos trinta anos. A idade óptima. É muito cedo. A biologia da fertilidade da mulher também. Quem é que hoje pode ser mãe na idade óptima para engravidar, aos vinte e três, vinte cinco anos? Decidi enviar a Nuno Pacheco um poema citrino e acidulado do meu penúltimo livro sobre o acordo ortográfico, e a poderosa inteligência literária portuguesa, para lhe dizer que também nesta quarentena linguística estamos juntos. Ter-lho-ia enviado. Durante um décimo de segundo poderia tê-lo feito. Luís Sepúlveda morreu e Agualusa comentou. Para morrer é preciso existir entre iguais. Não enviei nem enviarei. Estou farta. Des-existo. Escrevo e isso chega. Leio e existem à minha volta. Talvez os escritores lidos não morram, afinal. Nem aos setenta nem nunca, talvez apenas deixem de escrever. Lá está ele, pendurado no varandim de ferro, cigarro entre os dedos, o homem-cão a fumar por cima das copas das árvores, vagas de folhas frescas e verdes. Ao fim da tarde, virão os papagaios.

4 comentários:

  1. Grande texto Eugénia, gostei muito

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  2. Lindo. Que prazer deve ser escrever assim. Só sei do prazer de ler. Quase que me basta. Obrigada

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  3. Muito obrigada, Naked, o que diz é generoso.

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