6 de junho de 2020

Decide-te, Giovanni Drogo



“Se não fosse mais do que um homem comum a quem, por direito, cabe apenas um destino medíocre?”

Dino Buzzati, Deserto dos Tártaros
 

Se há um livro que o confinamento me fez voltar a visitar, é “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati. “O Deserto dos Tártaros”, desde que foi publicado em 1940, terá contribuído, ou sido o catalisador ou o assomo de coragem que faltava, para ruturas, nalguns casos revoluções, nas vidas de muitos do que o leram, e eu não fui exceção. Depois de o lermos, corremos mesmo o risco – e é um risco que vale a pena correr – de mudar de vida, e até de mudar radicalmente de vida. A (falsa) narrativa aparece-nos nua e crua, aparentemente sem artifícios, num despojamento e simplicidade que desarmam. Deixamo-nos levar, despreocupadamente, ao ritmo de uma vida que até nos é levemente familiar, à espera do que aí vem. E esperamos. Esperamos. Esperamos como o tenente Giovanni Drogo espera pelo inimigo na fortaleza Bastiani onde vai permanecendo. À espera que se passe qualquer coisa. Que venha o inimigo ou o que quer que justifique a continuação da leitura. Mas as páginas vão ficando para trás e nada acontece. Só o deserto bem à frente dos olhos do tenente Drogo. E acabamos a culpar Buzzati pelo logro. O mesmo, aliás, que Buzzati voltou a ensaiar num dos contos (“Quando Se Faz Sombra”) do seu fabuloso “Os Sete Mensageiros”, publicado dois anos depois: o da inquietante criança das perguntas incómodas que o protagonista, um contabilista, encontra no seu sótão, e que vem a descobrir ser ele próprio com menos trinta e cinco anos de idade. Tal como o contabilista é interpelado, também o leitor de Buzzati o é pela criança que foi, e que continua a habitar o sótão das suas expectativas frustradas. Com Buzzati, damos por nós a vestir a pele da morte para assistirmos à inexorável passagem do tempo e ao efeito que esta produz sobre a vida – sendo que a morte, nele, aparece sempre como contraponto da mesquinhez e insignificância da vida, como libertação e redenção de uma vida onde há muito se morreu sem se saber.

Mas se, com “O Deserto dos Tártaros”, Buzzati tem o descaramento de confrontar o leitor com o deserto da sua existência, agora, em plena pandemia que paralisou ou desacelerou o ritmo em todas as latitudes, é o mundo inteiro que interpela. Se antes tinha o hábito de aparecer ciclicamente, a mim e a muitos dos seus leitores, quando estava prestes a entrar no esquecimento (e que irritantes eram esses momentos, perdi a conta aos dias que as suas aparições estragaram, sempre quando estava mais tranquilo, mais perto de me sentir em paz), agora veio para ficar, em pose de aberta confrontação, já não com o homem pequeno, mas com a humanidade, com todo o género humano, exigindo-lhe a rutura, quiçá a revolução, a que, voluntariamente, os seus leitores, à minúscula escala individual de cada um, se sujeitaram em determinados momentos das respetivas vidas depois de conheceram o tenente Giovanni Drogo.               
 
Agora, é todo o planeta que aguarda pela decisão do tenente Drogo. É o Homem que, paralisado pela falta de coragem, incarna o drama do tenente Drogo. À sua frente, um deserto em vias de se transformar num abismo que só a rutura pode salvar. O mundo até parou para te ajudar a decidir, Giovanni. Não esperes mais por Godot.

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