14 de junho de 2020

Regresso a Hydra


 
Everybody has special and unique qualities. This is, of course, the feeling of youth, but in the glorious setting of Hydra, all these qualities were magnified”, disse Leonard Cohen sobre as pessoas que conheceu em Hydra e o estilo de vida hedonístico a que aí se dedicou. Foi com esta frase de Cohen na cabeça que, há quase um ano, me pus a caminho de Hydra. O meu contexto, convenhamos, era bem diferente do de Leonard em 1960, quando aí aportou pela primeira vez. Já me faltava uma boa parte do “feeling of youth” que os vinte e cinco anos de Cohen traziam consigo, assim como a visão romântica e sonhadora própria de quem, como Leonard, chegava com uma coleção de poemas debaixo do braço e dois mil dólares de um prémio literário no bolso. Cohen vinha para passar uma temporada, na expetativa de que os ares da ilha o inspirassem na escrita da sua primeira novela. Eu, talvez para não cair nas tentações do anunciado “glorious setting” de Hydra, já tinha bilhete de volta para daí a quatro dias. E, the last but not the least, quando pus o pé em terra, já me fazia acompanhar pela minha Marianne, ao contrário de Cohen que acabou por descobri-la nos meandros da cena artística de Hydra.  

Tudo o mais que a Cohen aconteceu em Hydra é do domínio público, mais ou menos romanceado, e está exemplarmente retratado no magnífico documentário de Nick Broomfield “Marianne & Leonard: Words of Love” (disponível em DVD e num videoclube perto de si): o encontro com Marianne, talvez o último exemplar de uma espécie, a musa, que o fenómeno #metoo condenou definitivamente à extinção, dessa epifania nascendo outra, por ela impulsionada, que converteu o Cohen poeta e novelista no songwriter que ficou para a História. Certo é que, e aqui não há ponta de lenda ou romance, sem Marianne não existiriam as canções de Cohen que hoje soletramos, desde logo a óbvia "So Long, Marianne" (que chegou a ter por título "Come On, Marianne", no que foi entendido como um apelo de Cohen a Marianne para que a relação de sete anos, entretanto desfeita, voltasse ao que tinha sido). E certo é também que sem Hydra, um lugar sem tempo onde, do amor às drogas e às artes, tudo era vivido em plena liberdade por aqueles que aí acorriam (e onde muitos milionários acostaram nos anos 60, mesmo que aí se pudesse viver com mil dólares o ano todo), Cohen nunca teria sido Cohen, mesmo com todas as intermitências, que eram também as da alma inquieta e insatisfeita de um homem sempre em fuga de si próprio, de uma década aí vivida.  

Com os meus olhos de viajante de passagem, pude ver ou pressentir, por todas as vielas de Hydra por onde passei em julho de 2019, que já não há poetas de viola em punho a versejar nos cafés como Cohen, musas de beleza escandinava como Marianne a inspirar serenatas em cada esquina, ou a ilusão de felicidade do amor livre e drogas psicadélicas dos loucos anos 60 da ilha. Mas, olhando para a Hydra de então das imagens de arquivo do documentário de Nick Broomfield, constato que o essencial, o tal “glorious setting” de uma ilha parada no tempo – na qual só de barco se acede às mesmas enseadas de cortar a respiração onde Marianne e Leonard iam a banhos, o burro continua a ser o único meio de locomoção e os escassos restaurantes e locais de pernoita turística servem apenas aqueles que venham com boas intenções –, pouco ou nada mudou. Talvez assim tenha ficado, tão imutável quanto irresistível nos seus encantos, para melhor dissimular os perigos que dizem encerrar. Os do tal estilo de vida hedonístico de que falava Cohen, e que, mesmo sem amor livre ou drogas psicadélicas agora, pode continuar a fazer juz ao nome da ilha, ou não fosse a Hidra, na mitologia grega, um monstro com corpo de dragão e várias cabeças de serpente, tão venenosa que matava quem dela se aproximasse apenas com o seu hálito e cheiro. Não é de descartar o que diz a voz das suas gentes: que, embora derrotada por Hércules (Héracles, em grego) num dos seus doze trabalhos, assume agora a forma de belas enseadas e praias.

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