entre dois muros de água
Da janela do quarto aberta a toda a luz, vejo as copas da fila
de árvores que atravessam a rua e a partem ao meio como Moisés partiu o mar: um
povo de folhas verdes avança não entre dois muros de água mas entre prédios
duros. Uns, os primeiros, tão velhos, e ao lado um novo e feio, e outro a ser recuperado. E mais outro. Duas gruas altas, novos campanários onde se anuncia o luxo do metro quadrado a
oito mil euros. Lisboa ainda é assim, paredes meias de absoluta diferença.
Assimetrias agudas. As árvores não querem saber disso para nada e crescem
também em altura, chegam já ao quarto andar.
Ao fim da tarde, as gaivotas pousam na grua do lado de lá a ver a noite
chegar. E voam só um pouco acima das copas e das cérceas. Eu acho que as
gaivotas são gozonas, uns bichos fortes e secos. Vivi quase vinte anos perto da
praia, nem quinhentos metros de distância… conheço-as. O cão que passeia lá em
baixo de trela não as conhece. Ladra. Do alto ela responde. Provoca. Ele,
coitado, ladra e volta a ladrar às alturas. Às gaivotas sai-lhes esta espécie
de latido da garganta que nos confunde. Por alguma razão lhes chamam os cães do
mar. Mas o cão lá em baixo não sabe. E procura.
Não sei se será assim tão diferente daquilo que as pessoas
fazem umas com as outras. Os poderes. Asas e latidos, e em baixo, de trela, cães confusos a ladrar, a morder ar quente e mais nada. Para
dizer a verdade, não tenho vocação para La Fontaine, nem para as
fábulas e os seus clichés e adversativas exemplares para a construção do mundo
à imagem de Portugal dos Pequeninos. Não. Prefiro
atravessar grandes muros de água.
Cães do mar. Nunca tinha ouvido. Gostei muito.
ResponderEliminarEstava a ler um texto sobre literatura indiana.
ResponderEliminarReflexão noturna antes de me apagar.
Uma fresca brisa do mar chegou com o seu texto. Sabe bem em tempos de canícula.