“Kalifat” - Netflix
O que nos é dado como adquirido passeia-se ao nosso lado. Convive connosco como aquele amigo de sempre, que achamos estar lá sempre para nós. Nem as coisas que pensamos serem adquiridas o são efectivamente, nem esse amigo está lá (sempre) para nós.
O passado dia 25 de Abril bateu-me forte, ou melhor, trancou-me em casa e bateu a porta com força. Eu não estava à espera de tamanho abanão e assim foi, porque a liberdade estava fechada comigo em casa. Não podíamos sair. Não podíamos festejar e talvez por isso, ou assertivamente por isso, ou exclusivamente por isso, por estar confinada e privada de uma série de coisas, lembrei-me de todos os 25 de Abril que festejei. Era jovem e inesgotável. Não havia crepúsculo nem aurora. Eram dias de seguida. Dias sem ponta para se pegar, eram dias a fio. E ao relembra-los, fui feliz. Fui feliz na medida que dura a felicidade de uma memória.
Coloquei uma Playlist que Zeca Afonso encabeçou e dancei com o meu filho na sala. Ele que ainda é inesgotável e feliz, sem medidas, dançou, pulou e imitou-me, ora nas piruetas, ora nos movimentos meio toscos contemporâneos. O meu filho é um excelente bailarino de dança contemporânea. Fizemos a festa possível. Foi o 25 de Abril possível, mas foi este que me desencadeou um pensamento que tinha como mais ou menos adquirido e afinal o que tenho, são mais do que menos dúvidas. Sou livre?
Nesse dia e nos muitos que se seguiram a liberdade não me deu paz, deu-me voltas e emaranhou-me por caminhos que tinham todos a mesma saída: eu presa ao conceito de liberdade sem poder sair dela. E não me refiro apenas à quarentena a que todos fomos sujeitos. Refiro-me à vida que queremos viver e não vivemos. As escolhas que fazemos quando na verdade queríamos ter escolhido o oposto. A liberdade é inteira ou por partes? Ter o melhor de dois, três, quatro, mundos é ser livre? O silêncio incomoda ou será antes liberdade? Estou a redescobrir, a recriar o conceito de liberdade e a posicionar-me novamente perante ela. Estava mais ou menos arrumada, mais ou menos adquirida, só que não.
Esta semana cometi o enorme, enormíssimo erro, no entanto uma excelente escolha, de começar a ver “Kalifat”. Uma série que conta sobre a perspectiva das mulheres o que é o estado islâmico, o islamismo, a fé, a aparência e a fragilidade dos valores em que a Europa está assente, a inerente liberdade tão desejada por estas mulheres - e a violência em que vivem sobre o autoproclamado estado islâmico.
Sim, foi um grande disparate ter começado a ver porque a série é tão boa como viciante e tão violenta como revoltante.
A protagonista arrisca a liberdade: quer fugir daquele inferno, telefona às escondidas para a Suécia num desesperado S.O.S e cada vez que o faz, corre o risco de ser apanhada e decapitada em praça pública. Esta mulher aparece em quase todos os planos com uma bebé de 4 meses ao colo. Para além do cenário de guerra em que vive, atravessa a fragilidade dos primeiros meses da maternidade.
Tudo isto potencia revolta e uma ansiedade galopante que o meu estado de graça aumenta - projecto-me no que vejo. O que aliás é um defeito de profissão, estou treinada para viver e sentir como se fosse “a outra” e nem sempre consigo separar-me disso.
A série é fantástica mas completamente contra indicada para a minha sensibilidade do momento.
Contudo dá que pensar. O conflito na Síria existe há tantos anos e surge-nos tantas vezes machado de sangue e de agonia que também o tomamos por dado adquirido. Sabemos que a situação está mal, muito mal. Sabemos que as pessoas morrem, fogem, afogam-se. Sabemos que existe o Daesh (ainda que enfraquecido de momento mas não tenhamos ilusões, está a reorganizar-se para ganhar forças e atacar) mas estamos longe de imaginar este verdadeiro inferno na terra, onde mulheres são oprimidas, violentadas física e psicologicamente e não têm liberdade sequer para ter um telefone. Aqui, ir à mercearia sozinha, ter um telemóvel ou pensar em liberdade, é sinónimo de uma grande sova que poderá acabar em sentença de morte. Qual é a mãe que ousaria deixar uma bebé de 4 meses órfã, entregue a fanáticos religiosos?
Estas mulheres estão tão longe de uma qualquer liberdade, assim como nós vivemos tão longe da realidade “ Alá Macba”, mas ainda assim vivemos tão perto deste inferno que poderá ser a casa de um vizinho: “Homem que obrigava companheira a prostituir-se, agredindo-a sistematicamente, alegando ser motivação profissional é hoje sentenciado em Coimbra”. Quantos quilómetros tem a distância? O estado revés do estado islâmico mesmo aqui ao lado, no mesmo noticiário. Que liberdade teve esta mulher até ao dia da sentença do homem?
Homens, mulheres, crianças, idosos, animais, são diariamente explorados, abusados. A muitos foi-lhes retirado logo à nascença a liberdade, o respeito, a dignidade. A que distância me encontro deles? O que faço eu com distância? De que liberdade falo quando falo em liberdade? Como posso eu, cidadã europeia de um estado laico, usar-me da minha liberdade para libertar outras mulheres?
Perguntas, algumas com resposta outras com um grande silêncio. Sei no entanto que o meu quotidiano para muitas delas seria o paraíso, tudo o que mais desejam para si e para os seus bebés - Seria a liberdade tão desejada e tão longínqua.
Serei eu livre sem saber?
Não farias a pergunta se não soubesses já a resposta. Gostei de saber que danças como o fogo.
ResponderEliminarSandra, no 25 de abril também andei por Raqqa a ver o mesmo do que tu. E a sentir mais ou menos o mesmo. Curiosamente, também com um rapazola de tenra idade (talvez sem os dotes de bailarino do teu) por perto. Bela série, viciante e poderosa.
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