22 de março de 2020

Vamos ter fé



Dia 1 do Estado de Emergência. Vamos ter fé.



Nunca antes o homo domesticus foi confrontado com tantas decisões a tomar em tão curto espaço de tempo. Saber como empregar o tempo livre quando se fica confinado às paredes de casa e às vinte e quatro horas do dia é um exercício de alguma dificuldade. Não por falta de opções mas por excesso delas. É claro que há sempre a possibilidade, para quem a tem, de fugir ao tempo livre acrescentando tempo de trabalho. Sim, as empresas deste mundo tecnológico rapidamente perceberão que o teletrabalho em quarentena é um manancial de faculdades infinitas para a pulverização dos limites dos períodos normais de trabalho e tratarão de o manter, com muito menos custos para os seus bolsos claro está, mesmo depois de a tempestade passar. Ora aí está mais uma razão para não exagerar no trabalho em casa e tirar um curso intensivo sobre como escolher com qualidade quando se trata de decidir o que fazer quando se é obrigado a ficar em casa.

Mas, vamos ao que interessa. Para quem tem família, como este vosso amigo, o Monopólio, o Cluedo e o Subbuteo livrar-se-ão das camadas de pó que acumularam em muitos anos (décadas mesmo). A Netflix, a HBO, o Filmin, a TVCine e o videoclube da NOS entregar-se-ão a uma competição feroz para captar a atenção mesmo daqueles que ainda não conheçam o germe (travei a tempo de usar a palavra vírus, que seria de muito mau gosto na atual circunstância) de devoradores de filmes e séries que transportam consigo. Voltarão as reuniões familiares à volta de um écran de televisão, convertido à noite em sala de cinema, e, como em tempos imemoriais se fazia, os almoços e os jantares serão palco de discussão do rico cartaz de programação cultural caseiro. A Peste do Camus e o Ensaio sobre a Cegueira do Saramago procurarão impor-se à pilha de livros que na cabeceira espreita à espera de vez, e terão de coexistir com o Publico e o Expresso neste tempo particular em que a informação credível é de ouro. Tudo isto sem o ruído sonoro imposto pela rua – da rua, apenas chegará o canto dos pássaros a prenunciar que, depois da tempestade, virá a bonança. E de outras casas, virão músicos de todo o mundo em concertos que nos entrarão pelas nossas dentro, para, todos os dias, nos fazerem lembrar que é em casa que se deve ficar neste tempo. E nunca nos faltará o sol das janelas, e o das escapadelas diárias de curta duração destinadas à sua fruição, e, da atividade desportiva, passará a rezar a história que, qualquer canto, parede ou chão de casa é um ginásio em potência.
E para todos os pais, avós ou tios, que de nós estão separados, os smartphones e tablets lá de casa iluminar-se-ão, piscarão e vibrarão diariamente para nos darem o conforto diário de sabermos que estão em segurança. E, enquanto isto, o mundo avançará para os salvar, e a emergência, vamos ter fé nisso, soltará as suas grilhetas para que o dia “eterno e claro” surja, uma vez mais, para nos permitir o longo abraço adiado.
O mundo que ficará depois disto ninguém consegue antecipar. Mas, tal como o navio do Comandante Vasco Moscoso de Aragão do velho Jorge Amado resistiu à tempestade, quando tudo à volta era destruído, porque todas as amarras foram lançadas ao cais, uma certeza há: a de que o nosso porto seguro, as amarras da família e o cais onde atraca, resistirão. E fica a esperança de que, mesmo que nada volte a ser como dantes, não desapareçam os laços comunitários, as correntes de solidariedade, o impulso de humanidade que uma luta que a todos afeta - sem distinção de geografias, raças, credos ou condição económica – tem reforçado. Vamos ter fé.

4 comentários:

  1. Vamos voltar a dar tempo ao tempo… e devagar devagarinho, chegaremos longe.
    Haja esperança e amigos como tu.
    Obgada

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    1. Querida Madame Unknown, haja esperança sim. E para uma amiga como tu, esta casa está sempre aberta :-)

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