em casa - 02
A Primavera começou antes no cimo da avenida.
Reverdeceram as primeiras árvores da linha de árvores – porque estão num lugar
mais alto onde o sol se apruma? Porque foram as primeiras a ser plantadas? Não
sei. Estes mistérios botânicos de luz e calor fazem-me ir à janela, de chávena
de café na mão, para ver melhor, como se, de as olhar, eu própria desenvolvesse
uns olhos de lobo mau, grandes e explicativos por assimilação não da avozinha
mas do verde das copas altas… Não sei.
Todo este tempo, aliás, tem sido o tempo do verbo não saber.
É pasmoso, no entanto: quando nos ensinaram as conjugações ninguém nos advertiu
que ao longo da vida, uma maioria significativa de verbos conjugados seriam
antecedidos da sua negação. Não haver. Não ter. Não amar. Não saber. Não saber
está agora no zénite do dicionário de verbos. Não sabemos quanto tempo
ficaremos em casa. Não sabemos as perdas que teremos. Não sabemos porque razão
as primeiras árvores arredondam as suas frescas copas verdes. Não sabemos sequer como
sobrevivemos aos despojos da nossa própria vida. Eu, que gosto da minha casa
perfeitamente organizada e tenho o culto do lugar das coisas, às vezes, tropeço
em matérias já invisíveis sobre os tapetes, quase nunca caio, mas entorses várias,
do tornozelo, o Cão, ao meu colo, a cabeça no meu ombro, o corpo já vazio,
leve demais, todo gasto da vida, levo-o assim para morrer com assepsia
veterinária, entorse do joelho, nem andar se pode depois de ficarmos sem
resposta, nenhuma resposta, o telemóvel funciona, é melhor desligar e ligar
outra vez, será que tenho rede, e o email repetidamente actualizado na caixa de
entrada, à espera da resposta, nem andar se pode no desemprego, essa semântica de
burocrata para não há lugar para ti, para fazeres o que fazes bem feito, nem
para seres quem és, inteiro, é impossível não cair com um tropeção destes, não
te amo, e as incontornáveis despedidas dos nossos mortos amados, knockout
cardíaco, vamos ao tapete.
E assim mesmo a Primavera começa. Começa antes. E continuará
depois, uma por uma, em todas as árvores em linha da avenida, verdes: conjugação do
verbo sim. Sei lá como.
É isso, a incerteza é certa.
ResponderEliminarEis uma Primavera do nosso descontentamento. Belo mote o do não saber.
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