22 de março de 2020

Diário - tempo de pandemia - Em Casa 02




em casa - 02

A Primavera começou antes no cimo da avenida. Reverdeceram as primeiras árvores da linha de árvores – porque estão num lugar mais alto onde o sol se apruma? Porque foram as primeiras a ser plantadas? Não sei. Estes mistérios botânicos de luz e calor fazem-me ir à janela, de chávena de café na mão, para ver melhor, como se, de as olhar, eu própria desenvolvesse uns olhos de lobo mau, grandes e explicativos por assimilação não da avozinha mas do verde das copas altas… Não sei.

Todo este tempo, aliás, tem sido o tempo do verbo não saber. É pasmoso, no entanto: quando nos ensinaram as conjugações ninguém nos advertiu que ao longo da vida, uma maioria significativa de verbos conjugados seriam antecedidos da sua negação. Não haver. Não ter. Não amar. Não saber. Não saber está agora no zénite do dicionário de verbos. Não sabemos quanto tempo ficaremos em casa. Não sabemos as perdas que teremos. Não sabemos porque razão as primeiras árvores arredondam as suas frescas copas verdes. Não sabemos sequer como sobrevivemos aos despojos da nossa própria vida. Eu, que gosto da minha casa perfeitamente organizada e tenho o culto do lugar das coisas, às vezes, tropeço em matérias já invisíveis sobre os tapetes, quase nunca caio, mas entorses várias, do tornozelo, o Cão, ao meu colo, a cabeça no meu ombro, o corpo já vazio, leve demais, todo gasto da vida, levo-o assim para morrer com assepsia veterinária, entorse do joelho, nem andar se pode depois de ficarmos sem resposta, nenhuma resposta, o telemóvel funciona, é melhor desligar e ligar outra vez, será que tenho rede, e o email repetidamente actualizado na caixa de entrada, à espera da resposta, nem andar se pode no desemprego, essa semântica de burocrata para não há lugar para ti, para fazeres o que fazes bem feito, nem para seres quem és, inteiro, é impossível não cair com um tropeção destes, não te amo, e as incontornáveis despedidas dos nossos mortos amados, knockout cardíaco, vamos ao tapete.

E assim mesmo a Primavera começa. Começa antes. E continuará depois, uma por uma, em todas as árvores em linha da avenida, verdes: conjugação do verbo sim. Sei lá como.



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