30 de março de 2020

Diário - tempo de pandemia - Em Casa 03


em casa 03

Vigésimo dia de isolamento social.

Todas as árvores da avenida estão agora em verde tenro acabado de verdecer e a estrada secou. A chuva foi pouca e miúda. Aqui em casa a música é muito boa, Thelonious Monk, Coltrane, Chet Baker… Estou a ouvir este Coffee Cold, queria escrever no ritmo, mas o teclado não vai nisso. Vou abanando a cabeça em estilo Maio de 68. Sempre tive a paixão do jazz. E adoro, mas adoro a desmaterialização da música e todos os hábitos que trouxeram o futuro para hoje. E o passado. É prodigiosa a técnica. 

Vigésimo dia. Não serei exactamente o Velho que o Vasco escreveu em De Folhas e Gaivotas. Desligo o telefone menos vezes e por menos tempo. Falo mais e com mais pessoas. Até já joguei House Party. Inacreditável, eu sei. Mas ainda estou muito longe do óptimo social. A verdade é que prefiro tomar café com Borges, em livro, a tomar café com quase toda a gente. E isto é uma perfídia. Mas viver assim rodeada também é uma alegria e um luxo. O meu querido Scruton, que não me fez a fineza de ser eterno, foi no outro dia, mesmo antes desta virulência, comigo para a cozinha fazer o jantar. Gosto tanto de estar na cozinha a conversar antípodas culinários enquanto eu de volta do fogão, prova lá, precisa de sal, não é? Mas não há muita gente de carne e osso e amor com quem se fale da poética da vida entre temperos e raciocínios mirabolantes e risíveis e sérios. As melhores ideias surgem-me quando estou a passear, a cozinhar, ou a ler poesia. Invariavelmente. As piores não precisam de suporte, são constantes. Num mundo perfeito, o melhor dos meus maridos, Steiner, faria podcasts do além e nós, cá, religiosos no verbo amar, a sintonizar dispositivos.

Às vezes penso que penso para não pensar. Aquela mulher no jornal da sic-n a dizer que esperava ser contaminada e morrer. Tão bonita. Uma mulher jovem. A jornalista a perguntar-lhe porquê à espera da óbvia resposta. E ela veio vestida de outra maneira: para descansar desta vida. Um campo de refugiados não é vida. Querer viver assim é ser louco. Descansar. Não há colcha nem casinha que te guardem nem HOPE. Somos espectadores destas assimetrias letais e outros monstros de sombra. A impotência é uma erva daninha e a arte salva-nos. Não a ela, no entanto.

Não vou à Gulbenkian, nem à Versailles nem à minha Dava onde encomendo o pão e as tâmaras. Não dou longos, nem curtos, passeios a pé enquanto espero o regresso da bicicleta. Saio para ir ao ecoponto para plásticos, papel e vidros agora que só há recolha de lixo orgânico. Vou ao supermercado uma vez por semana. Nestes tempos de solidariedade e abraços de arco-íris ainda não consegui comprar um pacote de farinha, nem um frasco de álcool. Desaparece tudo. Deve ser aquela malta dos quinhentos rolos de papel higiénico, aposto que têm na despensa vinte frascos de álcool e quinze quilos de farinha. Se me açambarcam o café, é bem capaz de haver uma revolução. Chego a casa como quem vem de uma central contaminada, sapatos ali, roupa na máquina, duche, ai porra que me esqueci limpar os iogurtes antes de os meter no frigorífico, e a papaia, faço-lhe o quê?

E há as listas.
. Ontem revi Arrival. Que bom filme.
. Estou a fazer um dos cursos online e gratuitos que Harvard disponibiliza.
. Li a Apologia de Sócrates que o Manuel Fonseca fez e só me apetece escrever ficção ateniense mas estou presa a um conto e liberdade não há.

Espero.

2 comentários:

  1. "...e a papaia, faço-lhe o quê?"
    Ora, ora... um bom refogado, pois então. Frite bem a papaia e acrescente-lhe tomate picado. Deixe ferver e junte-lhe coentros. Sal e piri-piri q.b. Depois diga-me.

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  2. Anda a ler a Apologia que roubei ao Platão? Não se esqueça de fazer uma recensão catita... ah. pois!

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