31 de março de 2020

Uma aventura... a ir pôr o lixo



Primeiro fico todo nu. Visto umas luvas, que são sempre o terceiro par, porque os dois primeiros costumo rasgá-los antes de os enfiar pelos dedos. Passo ao hall de casa, contaminado, imagino, de minúsculos coronas com ar perfeitamente idiota - percebo inteiramente que os anticorpos o ataquem mais do que é preciso. 
No hall contaminado, visto uma roupa igual à última que levei à rua depois de ter sido previamente lavada numa máquina cujos índices de detergente, diz a Organização Mundial de Saúde, são perfeitamente adequados à destruição da camada gordurosa que envolve o vírus.


Center for Desease Control
Center for Desease Control
 Calço os últimos sapatos que levei à rua durante os dias de pandemia e coloco no bolso apenas as chaves de casa.
Alinhados pela diretora-geral deste meu emprego, estão diversos sacos: um fechado e vários abertos; destes, um é dedicado ao vidro, outro ao cartão e outro ao plástico.
Saio do hall de casa para o patamar das escadas. Toco no botão de chamada com o nó de um dedo protegido pela luva. Entro, sem tocar em nada, de sacos a bambolear com a ginástica necessária. Com o nó do dedo enluvado marco o zero. Uns segundos depois a porta abre-se e atravesso o átrio do prédio sem ver vivalma. A porta é elétrica e o sacrificado nó do dedo serve para a destrancar, ao mesmo tempo que com o pé a puxo bruscamente para passar enquanto ela vai e vem (e folgam as costas, quando ela não me acerta em cheio).
Viro à direita, dou cinco passos e chego a outra porta com uma chave especial e estranha que coloco na respetiva fechadura. Abre-se imediatamente e no cubículo de dimensões razoáveis alinham-se vários caixotes de plásticos uniformizados. Abro um deles e deixo cair o saco fechado - é lixo indiscriminado, que não sofre como o plástico, o vidro e o cartão os horrores do apartheid.
Saio do cubículo, atravesso a rua. Há três monstros de plástico que recolhem o lixo discriminado e, porventura, indignado por tal discriminação (uma garrafa vazia de Bushmills não pode confraternizar com o invólucro de cartão da Wooks e menos com um velho saco do El Corte Inglês).
Passado um momento em que salto em cima das embalagens de cartão para caberem na abertura do seu destino, volto à esquerda, atravesso a rua e com o mesmo nó do dedo marco o código que me abre a porta do prédio. 
Subo o elevador já despojado de empecilhos, e entro em casa. No hall, onde vivem os coronas, fico todo nu e, enquanto a roupa vai para máquina e vou para a banheira. 
A operação dura entre cinco e dez minutos!
Sim, eu cumpro as medidas todas. Mas, não sei porquê, sinto que um dia alguém há de olhar para isto como nós  para os bicos enormes dos médicos, durante a peste negra. 
De qualquer modo, é uma vida animada!

3 comentários:

  1. ...depois dessa descrição só me apeteceu dizer...abre! Estou cá embaixo.

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  2. É isso!
    Era o que já tinha pensado várias, tantas!, vezes, mas não sabia dizer.

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