1. Acabou-se a NBA
Era de esperar. Ainda assim tinha a
secreta esperança de que a América fosse a América e houvesse uma arma
secreta, algum género de invenção que nos permitisse continuar a ver a NBA,
agora que os playoffs estavam tão perto. Talvez pudessem distribuir aos fãs
marchandising antiviral, máscaras e fatos Hazmat com as cores das equipas. Ou então talvez
cometessem a loucura de ignorar o vírus por ser tão unamerican. Mas este tipo
de ousadia apenas reservado para os mais altos cargos. A América não é já a
América. É apenas uma terra igual às outras, feita de humanidade e dos seus
defeitos, e muito parecida com a do filme Contagion do Soderberg.
Assim, acabaram-se os feitos do Luca
Doncic, do grego Giannis e do “Quiet” Leonard, os meus favoritos desta
temporada. Sinto falta do jogo da noite, muitas vezes já de madrugada, e do
convívio através de #hashtags com fãs noutros fuso horários, uns a acabar o
dia, outros a começar. Hábito que me fazia sentir cidadão desta Uber geografia
onde vivemos e que é, afinal, a geografia do vírus.
A NBA é a minha novela diária feita
de folhetins épicos, dramas, azares, surpresas, series imparáveis de vitórias e
de derrotas, uma novela de vencedores e vencidos, de super-homens, como Lebron
e o Steph Curry e super-vilões como o Patrick Beverly, e o Draymond Green—embora nunca mais os tenha havido com a vil qualidade do Bill
Lambear. E vão-me fazer falta os resumos dos jogos da véspera, logo pela manhã
durante o pequeno almoço. Hábito muito saudável e alienante que paulatinamente
veio substituir os noticiários da rádio, sempre tão deprimentes, não só pelas
notícias repetidas e os sound bites encomendados, mas pela repetição de tiques,
convenções e queixas velhas trazidas por anacrónicas vozes que parecem
empenhadas em noticiar que tudo continua miserável, triste e neorrealista como
dantes; que nada nunca muda nesta terra tão devota da Santa Convenção.
Lá veio um vírus, para mudar de
assunto, uma verdadeira má notícia, uma catástrofe que se adivinha ainda maior lá mais para a frente. Mas as vozes continuam no mesmo registo. O tom usado
para noticiar a pandemia é o mesmo, tem a mesma urgência e drama, do usado na
greve na função pública. A única consolação, ainda que pequena, é que acabou a
conversa do futebol e acabaram os carros na estrada, ou seja, baixou
consideravelmente a poluição. Bem estávamos precisados de ar puro.
2. Acabou-se o alho
Como é possível que um português, que
açambarca dois carrinhos de supermercado, se esqueça do alho?
Deixei a costeletas de borrego a
marinar tristes, só com umas ervas e limão. Estava convencido que tinha alho
com fartura—compro sempre uma réstia—mas não tenho nem um dentinho para me
consolar. E o verdadeiro drama, muito para além do desconsolo paliativo, é
que terei de voltar ao supermercado da esquina, um daqueles baratitos, onde uma
funcionária grande, muito vocal e algo ordinária, ainda há dias tossia livre e
alarvemente para a atmosfera. Mas tem de ser. As costeletas de borregos já
estão perdidas, mas há outra carne no frigorífico a precisar de perfume. Pensar
que anda uma mãe a amamentar um borreguinho, depositando nele as mais elevadas
espectativas gastronómicas, que o entrega ao cuidado do talhante, que o desmancha
até á costeletazinha, para tudo acabar numa desconsolada marinada omissa
d’alho.
No Reino Unido finalmente caíram em si
e vão começar a quarentena. Tento encontrar consolo no facto de saber que
aqueles milhões de almas reclusas como nós, que não usam nem um dentinho de
alho, quanto mais com uma cabeça inteira, ainda assim conseguiram uma
civilização muito aceitável—embora, como toda a gente sabe, comam mal. Talvez
por isso tenham boa escrita, por terem digestões menos demoradas. “Garlic doesn’t
agree with my stomach” disse-me um dia um amigo inglês no Pap’Açorda a olhar
uma açorda real. Não era só o alho. A cara dele não enganava. O que via no
prato parecia-lhe comida vomitada. Um bolo alimentar expelido com nacos de
marisco, intenso no cheiro a alho. Eu também o vi assim, pelos olhos dele. Mas
comi a açorda dos dois, enquanto ele, ironicamente, pedia um bife. Sem alho.
Stinking Rose, é como lá chamavam ao alho. Bifes! Uns Jeckels no que ao tempero
diz respeito e uns Hydes quanto toca a mamar whisky, que foi como ele
acompanhou o bife. Whisky e cerveja. O vinho também não concordava com ele.
Enfim. Concordávamos noutras coisas. Era bom gajo, o bife. Tenho saudades dele.
Hoje trocámos mensagens—lembrei-me dele depois do debacle do alho. Está na sua
casita no sul de Inglaterra, um velho farol de onde se vêem Turners da janela.
Concordamos nisso, em olhar o grande Atlântico.
Agora vou ter de me encher de coragem.
Amanhã de manhã aventurar-me-ei pelos lineares assombrados pela mulher
que tosse, evitando as gotículas infectas, para chegar às réstias de alho, ensacar
uma, voltar a cruzar os lineares, pagar, chegar a casa, queimar a roupa, as
luvas e a máscara no bidon que arde no quintal, tomar banho e fazer o resto das
carnes com preceito mediterrânico.
3.
Acabou-se a lixívia
Gostava de ter outro título. Talvez
acabou-se o mar, ou acabou-se o abraço, ou acabou-se o mundo como o
conhecemos—embora nos tempos que correm este seja o mais banal dos títulos.
Enfim, qualquer outro assunto mais literário, mas foi mesmo a lixívia que
acabou.
As últimas gotas usei-as para
desinfectar uma alface. Sabe-se lá que micro-organismos habitavam aqueles
refegos folhosos. Era já o fim da embalagem de Neoblanc. Agora tenho de comprar
mais. Será que a mulher que tosse já fez o teste?
Gosto de lixívia. Gosto do cheiro.
Como gosto do cheiro a gasolina, a acetona e a fumeiro. Gosto de química, de
cheiros ligeiramente intoxicantes com um trave cancerígeno.
O nome é romano, Lixivium, água
passada por cinzas e coada. Aprendi tudo sobre lixívia com um cliente
espanhol, faz tempo, e escrevi-lhe um anúncio com freiras todas vestidas de
branco. Freirinhas virgens, novas. Lembro-me que havia uma madre superior e
outros clichés, mas não me lembro do que se dizia. Devia meter milagres e
agradecimentos ao Senhor. A minha cabeça só lembra as freirinhas vestidas de
branco. E as fantasias a que me entreguei no plateau, enquanto filmávamos as
putativas virgens num convento perto de Barcelona.
É bonito, um chão limpo a brilhar e a
cheirar a lixívia, como acontecia em casa da minha avó antes de terem chegado
os lava-tudo perfumados; é particularmente reconfortante saber que ali, depois
de passada a esfregona, não sobrevivem os malévolos vírus coroados que, de tanto
vermos ilustrados nos media em 3D, cartoon e foto desfocadas de microscópio
electrónico, já imaginamos por todo o lado. Também pelos écrans me apetecia dar uma esfrega de lixívia.
Como muitos de nós, passei os
primeiros dias a ver notícias e a percorrer o Twitter, e como muitos de nós
agarrei uma neura gigante. Resolvi deixar de ver. Não aguento os wannabe
comentadores do Twitter, nem o tom compenetrado e paternalista dos locutores de
telejornal: o estamos aqui a fazer o nosso papel imprescindível, que é o de
noticiar os gráficos da morte e, já agora, mostrar alguns os políticos
moralmente corruptos cujo trabalho é sobretudo aparecer a entregar bilhas de
gás de máscara na cara para tapar a vergonha que nela não têm. Também não
aguento os anúncios pseudo dramáticos a falar de heróis de máscara, do nobre
povo, da nação valente, do vai ficar tudo bem, do vamos vencer este desafio…
parece que foram todos escritos pelo mesmo desinspirado redactor, o único que
se mantém no seu posto a rimar verbos e banalidades. Esta pandemia não está
nada boa para os media, que já antes sofriam de condições preexistentes.
Mas sobretudo deprimem-me os relatos
das mortes italianas e espanholas em lares onde se recolheram os mais velhos.
Já lá estavam à espera da morte, largados por filhos sem condição (ou
paciência) para os ter em casa, afastados da comunidade numa quarentena
permanente, impedidos de partilhar com os netos as histórias que
protagonizaram, credores de justa retribuição pelas vidas que entregaram, mas
abandonados sem valência, a não ser para os que fazem deste mórbido negócio
hoteleiro ganha pão. Espero que por cá não aconteça nada tão cruel.
E nos conventos, haverá COVID? Não
ouvi nenhuma notícia. Será que não há? E se não houver, será da lixívia ou será
o Senhor?
4.
Acabou-se o sossego
As traseiras da minha casa foram
abençoadas com um quintal gigante. Chama-se Serra de Sintra. Durante anos
passeei o cão—que agora é cadela, chama-se Maria José—pelos caminhos de terra
nos meio das árvores. A cadela atrás dos cheiros, livre, eu atrás dos
pensamentos, enredado neles. Fosse Inverno, quando os caminhos e os trilhos
estão cheios de lama e as árvores pingam constantemente, fosse Primavera,
quando neles brotam ervas cheias de viço, raramente aparecia alma viva. Todas
as que por lá andavam eram de outra qualidade. Hoje, de tão calcados estão os
trilhos, nem ervas nem assombrações.
Nos primeiros dias da quarentena,
antes dela ser decretada por édito estatal, quando os cidadãos ainda iam à
praia, ao calçadão e à esplanada, imbuídos daquele optimismo de avestruz—se eu
não vir o vírus, o vírus também não me vê—a paz nos bosques era maior. O ar
parecia mais limpo, o silêncio parecia mais nítido, o verde mais fresco e as
sombras mais sombrias. Nos bosques só eu e a Maria José. Morresse ali acometido
de síncope e ninguém me encontraria. Ficaria entregue à natureza e aos seus
processos, acompanhado pela cadela que faria guarda e honras ao cadáver,
contando aos outros bichos quem eu era e como desperdiçara a minha vida em
passeios; pelo menos até chegar a hora da ração. Tudo isto imaginei na sombria
paz dos bosques, um velório em forma de fábula com protagonistas locais.
Mas depois o decreto proibiu o
convívio, e a GNR e a polícia tomaram conta das praias e dos passeios, e a
neura doméstica começou a aumentar, e o cidadão resolveu passear o cão no meu
quintal, onde a autoridade não chega—coisa que nunca antes tinha feito.
Acabou-se o sossego. O meu e o da Maria José, que certo dia da semana passada foi
surpreendida e atacada por uma outra cadela, grande e malcriada, porventura uma
cadela da linha, e não voltou a ser a mesma. Agora desconfia de todos os cães
com que se cruza e tenta defender-se, preventivamente, atacando. E eu tenho que
levá-la pela trela, para evitar que ela, que tem mais de cinquenta quilos, coma
um. Não seria um espetáculo bonito.
Claro que a serra não é minha, nem os
caminhos de terra, mesmo que por vezes tenha a veleidade de, entredentes,
invocar usucapião. E isso eu explico à cadela, quando ela também o invoca entre
caninos do tamanho de dentes de tubarão. E aconselho-a a ter paciência,
explicando-lhe que o facto de haver estranhos a passear em caminhos que até
então desconheciam, não lhe dá a ela direito à irritação. E ralho, quando ela
rosna intolerante aos cães franceses e brasileiros de exposição, porque não
esse é o género de educação que ela recebeu em casa, nem o género de conversa
que alguma vez tenha ouvido à mesa, ao jantar; até porque é um cão de rua e não
come à mesa. E mais acrescento que os cães deles têm finalmente a sorte de,
pela primeira vez, correrem livres pela serra, e esse facto devia deixá-la
senão contente pelo menos solidária.
Mas a cadela, cagou. Para ela, como
para mim, acabou-se o sossego.
Confesso que nunca percebi a máquina
da roupa. A da loiça sim, sei como a utilizar, mas a da roupa é um mistério.
Não percebo os símbolos, nem os programas. E agora não tenho cuecas lavadas.
Duas alternativas se me apresentam: ou
aprendo os mistérios da máquina de lavar ou tento comprar online. Obviamente
escolho a alternativa mais fácil.
Escrevo cuecas no motor de busca e
perco-me. “Cuecas | Primavera Verão 2020 – Oysho Portugal” diz a primeira das
entradas. Abro. Maravilha. Dezenas de corpos em lingerie, corpos magníficos de
mulheres novíssimas e perfeitas—segundo padrões anacrónicos do velho homem
branco. Laser cut, clássico, cuequinha brasileira, tangas, corte em V.
Perco-me, como seria de esperar que me perdesse. Faço scroll. Revelam-se
troncos belíssimos de modelo encimados por caras sorrindo eróticos mistérios.
Passo uma boa meia-hora na variedade de modelos laser cut. Depois a coisa
melhora quando passo à tanga hispter. Maravilha: tanga hispter com detalhes florais,
tanga hispter com detalhes geométricos, tanga hispter laser cut. Enfim. Nada do
que estava à procura. Ou estava? Ainda assim não desisto. Devia desistir, uma
vez que apenas tenho as calças do fato de treino e sinto-me um pouco livre
demais. Mas sigo em frente até às cuecas clássicas—as delas, não as minhas:
clássicas de renda, clássicas de renda com padrão abstracto, clássicas de renda
com folhas, clássicas de renda com cós de tira em tecido acetinado elástico,
clássicas com corte em V, de microfibra ou algodão. As coisas que uma pessoa
aprende quando não tem o que fazer. É demais. Começo a sentir algum
desconforto, de tão bonito que é o catálogo.
Volto aos resultados da busca e abro o
segundo da lista. La Redoute. É mais técnico, não tem graça nem charme, só se
vê a posta do meio. Desisto, já tenho a minha conta.
Faço uma pesquisa de instruções da
máquina de lavar. Encontro. Leio. Aprendo. Vou fazer uma máquina de roupa
interior. Acabou-se o voyeurismo.
6.
Acabou-se a festa, pá?
Estes 46 anos foram de festa. Desde a
primeira manhã, quando impedidos de ir ao liceu fomos todos para a rua andar de
bicicleta, que a festa foi contínua. Sendo as primeiras impressões as mais fortes,
para mim, que entrava na adolescência, período já de si festivo por conta da
explosão hormonal, a característica do regime que perdurou foi a de gazeta, de
festa, digamos. E assim vivemos, eu e muitos, ao longo destas décadas que vão
para cinco, sempre em festa, interrompendo-a só quando era absolutamente necessário
para estudar e trabalhar. A festa era a vida, e o estudo e o trabalho, mesmo
que muito, e dedicado, e compenetrado, a interrupção da festa, não o contrário.
E é assim que deve ser.
Que sorte teve a minha geração. Para
começar, uma revolução onde a palavra de ordem era liberdade, conceito que para
uma mente adolescente significava carta branca, tempo e espaço para a festa,
para a loucura e irresponsabilidade. Depois da festa da revolução—e dos hippies
tardios e dos freaks—veio a ressaca. E uma vez tratada a ressaca, veio o punk e
a new wave, e a liberdade tomou a forma de pensamento, arte, moda, noite, dança
e sexo. Nova ressaca. E nova festa, desta vez a da liberdade individual,
trazida por ventos liberais e por dinheiro a rodos que comprava os brinquedos
que o dinheiro sempre compra. Por fim, com a passagem do milénio, chegou de
novo a luz impiedosa da madrugada que anuncia o fim da festa e revela o aspecto
irremediavelmente esfarrapado dos festejantes. De novo a ressaca, mas desta vez
das grandes, por ventura a maior de todas.
E o que acontece no fim da festa?
Chegam os puritanos, os prosélitos do costume e os oportunistas, aqueles que
não foram convidados ou não quiseram fazer parte da festa; e chegam de dedo em
riste, declarativos, normativos, com pulsões ditatoriais: a festa é má, como
maus são todos os festejantes, dizem os que nunca foram capazes de galhofa.
Acabou a festa, proclamam, desejosos de polícia, de censura, de autoridade e
norma. E quem são eles? Hoje, aqui, são aqueles que nunca festejaram a sério a
liberdade, ou nunca a entenderam como escolha pessoal. São aqueles que nunca se
divertiram e nunca souberam rir. São os fanáticos de cara de pau nos extremos
esquerdos e direitos. Uns de cariz religioso, outros de cariz policial. Ambos
normativos, mentirosos; ambos virulentos focos de contagio dos que estão ao seu
lado, à esquerda e à direita, com o mesmo bichinho totalitário, feitos da mesma
farinha. Cada um à sua maneira não desdenhariam o fim da liberdade e, com ele,
o fim da festa.
Mas há-de vir outra festa. Não a do
costume, essa acabou-se, mas outra. Curemos a ressaca e voltemos à festa.
Porque sem festa isto não vale a pena.
Voltemos à festa, pá! Grande festa o teu texto :-) E não exageres na lixívia nem no desinfetante nem nos raios ultravioletas.
ResponderEliminarAinda bem que não acabou tudo e que o MAD MEN vive!
ResponderEliminarE por andar uma mae a amamentar um borreguinho, ainda há pouco, antes da pamerdia, um amigo novo de Belo Horizonte, depois de me ter feito um churrasco daqueles me dizia: Eu aguento tudo de um filho, viu Guilherme? Quando eu digo tudo, é TUDO MESMO! Só não aguento que um dia venha para mim e diga: Papai, tenho uma coisa para dizer para o Senhor: Sou vegetariano! O que é que eu vou dizer para a família, para os amigos, para o pessoal lá de BH?
Abraco