26 de abril de 2020

ACABOU-SE. Semanário (1-6)



1. Acabou-se a NBA

Era de esperar. Ainda assim tinha a secreta esperança de que a América fosse a América e houvesse uma arma secreta, algum género de invenção que nos permitisse continuar a ver a NBA, agora que os playoffs estavam tão perto. Talvez pudessem distribuir aos fãs marchandising antiviral, máscaras e fatos Hazmat com as cores das equipas. Ou então talvez cometessem a loucura de ignorar o vírus por ser tão unamerican. Mas este tipo de ousadia apenas reservado para os mais altos cargos. A América não é já a América. É apenas uma terra igual às outras, feita de humanidade e dos seus defeitos, e muito parecida com a do filme Contagion do Soderberg. 
Assim, acabaram-se os feitos do Luca Doncic, do grego Giannis e do “Quiet” Leonard, os meus favoritos desta temporada. Sinto falta do jogo da noite, muitas vezes já de madrugada, e do convívio através de #hashtags com fãs noutros fuso horários, uns a acabar o dia, outros a começar. Hábito que me fazia sentir cidadão desta Uber geografia onde vivemos e que é, afinal, a geografia do vírus.
A NBA é a minha novela diária feita de folhetins épicos, dramas, azares, surpresas, series imparáveis de vitórias e de derrotas, uma novela de vencedores e vencidos, de super-homens, como Lebron e o Steph Curry e super-vilões como o Patrick Beverly, e o Draymond Green—embora nunca mais os tenha havido com a vil qualidade do Bill Lambear. E vão-me fazer falta os resumos dos jogos da véspera, logo pela manhã durante o pequeno almoço. Hábito muito saudável e alienante que paulatinamente veio substituir os noticiários da rádio, sempre tão deprimentes, não só pelas notícias repetidas e os sound bites encomendados, mas pela repetição de tiques, convenções e queixas velhas trazidas por anacrónicas vozes que parecem empenhadas em noticiar que tudo continua miserável, triste e neorrealista como dantes; que nada nunca muda nesta terra tão devota da Santa Convenção.
Lá veio um vírus, para mudar de assunto, uma verdadeira má notícia, uma catástrofe que se adivinha ainda maior lá mais para a frente. Mas as vozes continuam no mesmo registo. O tom usado para noticiar a pandemia é o mesmo, tem a mesma urgência e drama, do usado na greve na função pública. A única consolação, ainda que pequena, é que acabou a conversa do futebol e acabaram os carros na estrada, ou seja, baixou consideravelmente a poluição. Bem estávamos precisados de ar puro.

2. Acabou-se o alho

Como é possível que um português, que açambarca dois carrinhos de supermercado, se esqueça do alho?
Deixei a costeletas de borrego a marinar tristes, só com umas ervas e limão. Estava convencido que tinha alho com fartura—compro sempre uma réstia­—mas não tenho nem um dentinho para me consolar. E o verdadeiro drama, muito para além do desconsolo paliativo, é que terei de voltar ao supermercado da esquina, um daqueles baratitos, onde uma funcionária grande, muito vocal e algo ordinária, ainda há dias tossia livre e alarvemente para a atmosfera. Mas tem de ser. As costeletas de borregos já estão perdidas, mas há outra carne no frigorífico a precisar de perfume. Pensar que anda uma mãe a amamentar um borreguinho, depositando nele as mais elevadas espectativas gastronómicas, que o entrega ao cuidado do talhante, que o desmancha até á costeletazinha, para tudo acabar numa desconsolada marinada omissa d’alho.
No Reino Unido finalmente caíram em si e vão começar a quarentena. Tento encontrar consolo no facto de saber que aqueles milhões de almas reclusas como nós, que não usam nem um dentinho de alho, quanto mais com uma cabeça inteira, ainda assim conseguiram uma civilização muito aceitável—embora, como toda a gente sabe, comam mal. Talvez por isso tenham boa escrita, por terem digestões menos demoradas. “Garlic doesn’t agree with my stomach” disse-me um dia um amigo inglês no Pap’Açorda a olhar uma açorda real. Não era só o alho. A cara dele não enganava. O que via no prato parecia-lhe comida vomitada. Um bolo alimentar expelido com nacos de marisco, intenso no cheiro a alho. Eu também o vi assim, pelos olhos dele. Mas comi a açorda dos dois, enquanto ele, ironicamente, pedia um bife. Sem alho. Stinking Rose, é como lá chamavam ao alho. Bifes! Uns Jeckels no que ao tempero diz respeito e uns Hydes quanto toca a mamar whisky, que foi como ele acompanhou o bife. Whisky e cerveja. O vinho também não concordava com ele. Enfim. Concordávamos noutras coisas. Era bom gajo, o bife. Tenho saudades dele. Hoje trocámos mensagens—lembrei-me dele depois do debacle do alho. Está na sua casita no sul de Inglaterra, um velho farol de onde se vêem Turners da janela. Concordamos nisso, em olhar o grande Atlântico.
Agora vou ter de me encher de coragem. Amanhã de manhã aventurar-me-ei pelos lineares assombrados pela mulher que tosse, evitando as gotículas infectas, para chegar às réstias de alho, ensacar uma, voltar a cruzar os lineares, pagar, chegar a casa, queimar a roupa, as luvas e a máscara no bidon que arde no quintal, tomar banho e fazer o resto das carnes com preceito mediterrânico.




3. Acabou-se a lixívia 

Gostava de ter outro título. Talvez acabou-se o mar, ou acabou-se o abraço, ou acabou-se o mundo como o conhecemos—embora nos tempos que correm este seja o mais banal dos títulos. Enfim, qualquer outro assunto mais literário, mas foi mesmo a lixívia que acabou.
As últimas gotas usei-as para desinfectar uma alface. Sabe-se lá que micro-organismos habitavam aqueles refegos folhosos. Era já o fim da embalagem de Neoblanc. Agora tenho de comprar mais. Será que a mulher que tosse já fez o teste?
Gosto de lixívia. Gosto do cheiro. Como gosto do cheiro a gasolina, a acetona e a fumeiro. Gosto de química, de cheiros ligeiramente intoxicantes com um trave cancerígeno.
O nome é romano, Lixivium, água passada por cinzas e coada. Aprendi tudo sobre lixívia  com um cliente espanhol, faz tempo, e escrevi-lhe um anúncio com freiras todas vestidas de branco. Freirinhas virgens, novas. Lembro-me que havia uma madre superior e outros clichés, mas não me lembro do que se dizia. Devia meter milagres e agradecimentos ao Senhor. A minha cabeça só lembra as freirinhas vestidas de branco. E as fantasias a que me entreguei no plateau, enquanto filmávamos as putativas virgens num convento perto de Barcelona.
É bonito, um chão limpo a brilhar e a cheirar a lixívia, como acontecia em casa da minha avó antes de terem chegado os lava-tudo perfumados; é particularmente reconfortante saber que ali, depois de passada a esfregona, não sobrevivem os malévolos vírus coroados que, de tanto vermos ilustrados nos media em 3D, cartoon e foto desfocadas de microscópio electrónico, já imaginamos por todo o lado. Também pelos écrans me apetecia dar uma esfrega de lixívia.
Como muitos de nós, passei os primeiros dias a ver notícias e a percorrer o Twitter, e como muitos de nós agarrei uma neura gigante. Resolvi deixar de ver. Não aguento os wannabe comentadores do Twitter, nem o tom compenetrado e paternalista dos locutores de telejornal: o estamos aqui a fazer o nosso papel imprescindível, que é o de noticiar os gráficos da morte e, já agora, mostrar alguns os políticos moralmente corruptos cujo trabalho é sobretudo aparecer a entregar bilhas de gás de máscara na cara para tapar a vergonha que nela não têm. Também não aguento os anúncios pseudo dramáticos a falar de heróis de máscara, do nobre povo, da nação valente, do vai ficar tudo bem, do vamos vencer este desafio… parece que foram todos escritos pelo mesmo desinspirado redactor, o único que se mantém no seu posto a rimar verbos e banalidades. Esta pandemia não está nada boa para os media, que já antes sofriam de condições preexistentes.
Mas sobretudo deprimem-me os relatos das mortes italianas e espanholas em lares onde se recolheram os mais velhos. Já lá estavam à espera da morte, largados por filhos sem condição (ou paciência) para os ter em casa, afastados da comunidade numa quarentena permanente, impedidos de partilhar com os netos as histórias que protagonizaram, credores de justa retribuição pelas vidas que entregaram, mas abandonados sem valência, a não ser para os que fazem deste mórbido negócio hoteleiro ganha pão. Espero que por cá não aconteça nada tão cruel.
E nos conventos, haverá COVID? Não ouvi nenhuma notícia. Será que não há? E se não houver, será da lixívia ou será o Senhor?



4. Acabou-se o sossego

As traseiras da minha casa foram abençoadas com um quintal gigante. Chama-se Serra de Sintra. Durante anos passeei o cão—que agora é cadela, chama-se Maria José—pelos caminhos de terra nos meio das árvores. A cadela atrás dos cheiros, livre, eu atrás dos pensamentos, enredado neles. Fosse Inverno, quando os caminhos e os trilhos estão cheios de lama e as árvores pingam constantemente, fosse Primavera, quando neles brotam ervas cheias de viço, raramente aparecia alma viva. Todas as que por lá andavam eram de outra qualidade. Hoje, de tão calcados estão os trilhos, nem ervas nem assombrações.
Nos primeiros dias da quarentena, antes dela ser decretada por édito estatal, quando os cidadãos ainda iam à praia, ao calçadão e à esplanada, imbuídos daquele optimismo de avestruz—se eu não vir o vírus, o vírus também não me vê—a paz nos bosques era maior. O ar parecia mais limpo, o silêncio parecia mais nítido, o verde mais fresco e as sombras mais sombrias. Nos bosques só eu e a Maria José. Morresse ali acometido de síncope e ninguém me encontraria. Ficaria entregue à natureza e aos seus processos, acompanhado pela cadela que faria guarda e honras ao cadáver, contando aos outros bichos quem eu era e como desperdiçara a minha vida em passeios; pelo menos até chegar a hora da ração. Tudo isto imaginei na sombria paz dos bosques, um velório em forma de fábula com protagonistas locais.
Mas depois o decreto proibiu o convívio, e a GNR e a polícia tomaram conta das praias e dos passeios, e a neura doméstica começou a aumentar, e o cidadão resolveu passear o cão no meu quintal, onde a autoridade não chega—coisa que nunca antes tinha feito. Acabou-se o sossego. O meu e o da Maria José, que certo dia da semana passada foi surpreendida e atacada por uma outra cadela, grande e malcriada, porventura uma cadela da linha, e não voltou a ser a mesma. Agora desconfia de todos os cães com que se cruza e tenta defender-se, preventivamente, atacando. E eu tenho que levá-la pela trela, para evitar que ela, que tem mais de cinquenta quilos, coma um. Não seria um espetáculo bonito.
Claro que a serra não é minha, nem os caminhos de terra, mesmo que por vezes tenha a veleidade de, entredentes, invocar usucapião. E isso eu explico à cadela, quando ela também o invoca entre caninos do tamanho de dentes de tubarão. E aconselho-a a ter paciência, explicando-lhe que o facto de haver estranhos a passear em caminhos que até então desconheciam, não lhe dá a ela direito à irritação. E ralho, quando ela rosna intolerante aos cães franceses e brasileiros de exposição, porque não esse é o género de educação que ela recebeu em casa, nem o género de conversa que alguma vez tenha ouvido à mesa, ao jantar; até porque é um cão de rua e não come à mesa. E mais acrescento que os cães deles têm finalmente a sorte de, pela primeira vez, correrem livres pela serra, e esse facto devia deixá-la senão contente pelo menos solidária.
Mas a cadela, cagou. Para ela, como para mim, acabou-se o sossego.

5. Acabou-se a roupa interior

Confesso que nunca percebi a máquina da roupa. A da loiça sim, sei como a utilizar, mas a da roupa é um mistério. Não percebo os símbolos, nem os programas. E agora não tenho cuecas lavadas.
Duas alternativas se me apresentam: ou aprendo os mistérios da máquina de lavar ou tento comprar online. Obviamente escolho a alternativa mais fácil.
Escrevo cuecas no motor de busca e perco-me. “Cuecas | Primavera Verão 2020 – Oysho Portugal” diz a primeira das entradas. Abro. Maravilha. Dezenas de corpos em lingerie, corpos magníficos de mulheres novíssimas e perfeitas—segundo padrões anacrónicos do velho homem branco. Laser cut, clássico, cuequinha brasileira, tangas, corte em V. Perco-me, como seria de esperar que me perdesse. Faço scroll. Revelam-se troncos belíssimos de modelo encimados por caras sorrindo eróticos mistérios. Passo uma boa meia-hora na variedade de modelos laser cut. Depois a coisa melhora quando passo à tanga hispter. Maravilha: tanga hispter com detalhes florais, tanga hispter com detalhes geométricos, tanga hispter laser cut. Enfim. Nada do que estava à procura. Ou estava? Ainda assim não desisto. Devia desistir, uma vez que apenas tenho as calças do fato de treino e sinto-me um pouco livre demais. Mas sigo em frente até às cuecas clássicas—as delas, não as minhas: clássicas de renda, clássicas de renda com padrão abstracto, clássicas de renda com folhas, clássicas de renda com cós de tira em tecido acetinado elástico, clássicas com corte em V, de microfibra ou algodão. As coisas que uma pessoa aprende quando não tem o que fazer. É demais. Começo a sentir algum desconforto, de tão bonito que é o catálogo.
Volto aos resultados da busca e abro o segundo da lista. La Redoute. É mais técnico, não tem graça nem charme, só se vê a posta do meio. Desisto, já tenho a minha conta.
Faço uma pesquisa de instruções da máquina de lavar. Encontro. Leio. Aprendo. Vou fazer uma máquina de roupa interior. Acabou-se o voyeurismo.


6. Acabou-se a festa, pá?

Estes 46 anos foram de festa. Desde a primeira manhã, quando impedidos de ir ao liceu fomos todos para a rua andar de bicicleta, que a festa foi contínua. Sendo as primeiras impressões as mais fortes, para mim, que entrava na adolescência, período já de si festivo por conta da explosão hormonal, a característica do regime que perdurou foi a de gazeta, de festa, digamos. E assim vivemos, eu e muitos, ao longo destas décadas que vão para cinco, sempre em festa, interrompendo-a só quando era absolutamente necessário para estudar e trabalhar. A festa era a vida, e o estudo e o trabalho, mesmo que muito, e dedicado, e compenetrado, a interrupção da festa, não o contrário. E é assim que deve ser.
Que sorte teve a minha geração. Para começar, uma revolução onde a palavra de ordem era liberdade, conceito que para uma mente adolescente significava carta branca, tempo e espaço para a festa, para a loucura e irresponsabilidade. Depois da festa da revolução—e dos hippies tardios e dos freaks—veio a ressaca. E uma vez tratada a ressaca, veio o punk e a new wave, e a liberdade tomou a forma de pensamento, arte, moda, noite, dança e sexo. Nova ressaca. E nova festa, desta vez a da liberdade individual, trazida por ventos liberais e por dinheiro a rodos que comprava os brinquedos que o dinheiro sempre compra. Por fim, com a passagem do milénio, chegou de novo a luz impiedosa da madrugada que anuncia o fim da festa e revela o aspecto irremediavelmente esfarrapado dos festejantes. De novo a ressaca, mas desta vez das grandes, por ventura a maior de todas.
E o que acontece no fim da festa? Chegam os puritanos, os prosélitos do costume e os oportunistas, aqueles que não foram convidados ou não quiseram fazer parte da festa; e chegam de dedo em riste, declarativos, normativos, com pulsões ditatoriais: a festa é má, como maus são todos os festejantes, dizem os que nunca foram capazes de galhofa. Acabou a festa, proclamam, desejosos de polícia, de censura, de autoridade e norma. E quem são eles? Hoje, aqui, são aqueles que nunca festejaram a sério a liberdade, ou nunca a entenderam como escolha pessoal. São aqueles que nunca se divertiram e nunca souberam rir. São os fanáticos de cara de pau nos extremos esquerdos e direitos. Uns de cariz religioso, outros de cariz policial. Ambos normativos, mentirosos; ambos virulentos focos de contagio dos que estão ao seu lado, à esquerda e à direita, com o mesmo bichinho totalitário, feitos da mesma farinha. Cada um à sua maneira não desdenhariam o fim da liberdade e, com ele, o fim da festa.
Mas há-de vir outra festa. Não a do costume, essa acabou-se, mas outra. Curemos a ressaca e voltemos à festa. Porque sem festa isto não vale a pena.

2 comentários:

  1. Voltemos à festa, pá! Grande festa o teu texto :-) E não exageres na lixívia nem no desinfetante nem nos raios ultravioletas.

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  2. Ainda bem que não acabou tudo e que o MAD MEN vive!

    E por andar uma mae a amamentar um borreguinho, ainda há pouco, antes da pamerdia, um amigo novo de Belo Horizonte, depois de me ter feito um churrasco daqueles me dizia: Eu aguento tudo de um filho, viu Guilherme? Quando eu digo tudo, é TUDO MESMO! Só não aguento que um dia venha para mim e diga: Papai, tenho uma coisa para dizer para o Senhor: Sou vegetariano! O que é que eu vou dizer para a família, para os amigos, para o pessoal lá de BH?
    Abraco

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