17 de maio de 2020

10. Cona urbi et orbi. Acabou-se





“Obrigado Bruno por ter sido a primeira cona a quem ligaste”, disse a boca linda da Jéssica Athayde no último episódio do talk-show que o Bruno Nogueira a.k.a. Corpo Dormente, fez no Instagram todas as noites desta quarentena. Mais tarde, da varanda de um prédio iluminado com luzes de Natal, um gajo gritou à cidade e ao mundo “Eu gosto e cona”. Quem não gosta, pensei, apenas para mim, sabendo bem tratar-se de uma generalização politicamente incorrecta. O Bruno parecia não ouvir os agradecimentos, ou se os ouviu não reagiu nem disse coisa com coisa, assoberbado pelo banho popular, o cortejo de seguidores na velha realidade sem mediação de écran, ao volante de motas e carros pela marginal, pela A5 e pelas ruas de Lisboa, onde, em pleno Marquês, praça de muitas coroações, uma ambulância do INEM acendeu as luzes e proclamou pelo megafone, “Bruno és o maior”.
Dia 15 foi o último episódio do Corpo Dormente e foi também a coroação de um novo rei da comédia e do entretenimento. Só pode haver um rei. Já foi o Herman, hoje uma espécie de rainha mãe que muito acarinhamos, fazendo votos para que viva nos écrans pelo menos até ser muito velha. Já foi o muito grande RAP, durante um reinado de dez anos; talvez não tanto um rei, mas um regente tão talentoso quanto habilidoso a mover-se nas cortes ao serviço do status quo: as velhas televisões, os velhos políticos, os velhos anunciantes e os velhos intelectuais, enfim a nobreza e o clero do regime.
Dia 15, com parada e aclamação popular pelas ruas da cidade, luzes de Natal nas janelas e cartazes na rua a dizer Cona a bold, com a bênção do Ronaldo e, finalmente, rodeado do seu séquito no Coliseu, o palácio dos espetáculos, o Bruno Nogueira foi entronado com novo soberano da comédia e do entretenimento, perante uma audiência móvel de 170 mil seguidores.
Os lives do Corpo Dormente foram muito bons muitas vezes. Tinham todas as características de um talk show—genérico, convidados regulares do mundo das artes e do entretenimento, product placement, músico residente, anfitrião—mas não era um talk show daqueles farsolas, das televisões; não tinha nada dos tiques, dos clichês e convenções do costume. Todos os tiques eram pessoais, divertidos e sem tabus. Falou-se de tudo, usaram-se todas as palavras que usamos no quotidiano, todo o nosso bonito e bruto vernáculo, viram-se cus e pichas enfeitadas de árvores de Natal e falou-se muito e regularmente de cona. Foi um talk show feito neste tempo e para esta geração, que vive noutro mundo, com outros instrumentos, outro vocabulário e com outra liberdade de expressão possibilitada pela efemeridade do suporte.
Para além do Rei da comédia, é justo referir-se o magnífico elenco de suporte: entre outros, o grande Albano Jerónimo, talentosíssimo actor e senhor de um belíssimo rabo; o simpático Martinha; o Manzarra a fazer de parvo, personagem que lhe assenta como luva; as desbocadas e enérgicas Beatriz Gosta e Inês AP; o Bukowsky do comentário e do humor, João Quadros; e o perfeito sidekick do Bruno, o velho, triste e embaraçoso palhaço pobre chamado Nuno Markl. Todos disseram e fizeram tudo como os malucos, porque nada ficou gravado para memória futura, a não ser na nossa. Agora, acabou-se. Quem não viu, já não vê. Acabou-se, como é do protocolo das coisas boas e pecaminosas: os verões, as sobremesas, as boas garrafas de vinho, os amores e de tudo o que bom.
Há quem não tenha gostado, como é normal. Há quem não goste de vernáculo e, em particular, da palavra cona, o que também é normal. Há mesmo quem não goste de cona, o que também não deixa de ser normal. Mas que ela foi desconfinada, arejada e posta a circular urbi et orbi durante esta quarentena, foi.
Long live the new king of comedy.


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