4 de maio de 2020

7. Acabou-se o desodorizante




Durante boa parte de uma semana farejei divisões, levantei tapetes, arredei armários e estantes à procura de um incomodativo cheiro a bicho peludo em avançada decomposição. Nada encontrei. Felizmente, com o passar dos dias, o odor foi-se diluindo até que deixei de o sentir. Percebi mais tarde, quando me visitaram e exclamaram de nariz torcido, "Está aqui um cheiro esquisito a cão e urso", que a elusiva emanação afinal não tinha desaparecido, antes continuava activa debaixo dos meus já saturados receptores olfactivos. Era eu o animal peludo.
O desodorizante, hábito higiénico e muito sociável, tinha acabado, e estando eu em casa, protegido durante as vídeo conferências por uma firewall contra odores axilares, halitoses e outros, não senti necessidade de me dar ao trabalho.
Fui a um site e procurei o meu desodorizante habitual: um stick perfumado que emana frescura, saúde e vitaminas felizes, e que funciona como o limão no peixe ou em carnes gordurosas, neutralizando os aromas excessivos. Normalmente cheiro apenas a nada.
Encomendei online. Não havendo o habitual, encomendei outro da mesma marca. Agora cheiro a parvo.
Mas já lá vamos. Antes, façamos um longo parágrafo para ilustrar a longa e maçadora espera que se seguiu.
Como muitos de nós encomendei coisas online para evitar o contacto social e concluí—talvez se trate de uma lei da grande distribuição—que quanto maior a distribuição, pior a distribuição. Dois meses tiveram aquelas almas para preparar o sistema. Não funcionou. Encomendar e receber víveres dez dias, quinze dias, quase um mês depois (como aconteceu a um vizinho) é ridículo. Aconteceu. Não têm servidores, não têm pessoal, não têm frota? Durante anos, em muitas reuniões, assisti a apresentações de grandes empresas de retalho, sobre o online, sobre entregar, sobre facilitar, sobre o novo mundo. Apresentações lindas, convincentes, esmeradas no grafismo e na lógica e apresentadas por enxutos, bem vestidos e desodorizados gestores. Queremos ser os primeiros, queremos ser a referência, queremos… diziam. Mas ser mesmo? Fazer? Implementar? Investir? Mudar de hábitos? Chupa! Pelo menos três grandes marcas da distribuição falharam-me redondamente e de muitas formas. Entregas ridiculamente fragmentadas, tardias, mal embaladas. Muito se fala entre o publico e o privado, mas a diferença não é muita. Os dois sectores têm os mesmos problemas: más contas e má gestão. Dois meses seriam suficientes para que grandes organizações se adaptassem, convocassem recursos e vontades, se tornassem relevantes, inesquecivelmente relevantes, nesta altura. A maior parte fizeram anúncios a falar de heróis, mas entregar legumes dentro de um prazo razoável, nem por isso. Curiosamente, foram as pequenas lojas que me surpreenderam. A farmácia, que logo adoptou encomendas por WhatsApp, pagamentos por MBway e entregas à porta, no carro. Pequenas lojas entregaram-me em casa. Até uma cadeira eu recebi—a cadeira onde trabalho partiu-se—vinda de Dublin, entregue em cinco dias e com melhor preço do que a que tentei encomendar em Lisboa (ainda estou à espera que me respondam, duas semanas depois).
Enfim.
Lá chegou o desodorizante. Apliquei-o nos sítios do costume e, estranhamente, o cheiro a bicho peludo foi substituído por um odor a parvo. Não tenho outra maneira de o descrever. Cheiro a parvo, a gajo que vai sair à noite preparado para o que der e vier, preparado para facturar. Cheiro a sorriso fixo, a gestor de PowerPoint. Um cheiro pretensioso, empertigado, meio adocicado, com baunilha ou carvalho francês, enjoativo e com notas de velha peúga branca. Um aroma a noite, calça slim e polo com as golas levantadas. A parvo, lá está.
Nunca pensei que fosse possível destilar e condensar num perfume a essência do parvo, mas, aparentemente, o génio humano é capaz de tudo. O que me enche de esperança quanto ao desenvolvimento rápido da vacina do COVID.

Acabou-se (semanário 1-6)

2 comentários:

  1. Mestre Bidarra, soube de fonte segura que o teu texto está a virar de avesso as distribuidoras de grande superfície. Não te espantes se amanhã tiveres à porta de casa caixotes e caixotes de desodorizante.

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  2. Pedrinho,como habitualmente uma pequena pérola.
    Saudades

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