17 de maio de 2020

9. Acabou-se faz tempo





Há nove semanas à espera que os Alíseos soprem.  Em redor, hoje, como ontem e anteontem, só azul. A minha companhia é repetitiva, as mesmas palavras, os mesmos pensamentos, os mesmos vícios de pensamento, os mesmos silogismos, conclusões, alucinações, o mesmo eu. Não sinto a corrente. Tudo parece igual. Tudo é igual. Há uma corrente, sei-o, mas não o sinto. Não fossem os peixes voadores…
E ainda assim não tenho saudades de quase nada. Nem das rotinas do quotidiano, momentaneamente a balançar suspenso à espera de ventos e correntes, nem do velho passado celebrado ad náusea na velha rádio que, por vício, ligo. Nada me irrita tanto quanto a celebração do antes é que era bom, dos bons velhos tempos, da música da juventude, dos Glory Days que cantava o Bruce Springsteen. Dos portos zarpados faz tempo. Desprezo, como absolutamente reacionários, os programas das emissoras nacionais onde os DJ partilham a sua juventude em forma de banda sonora e memória de televisão; como se uma e outras tivessem algum interesse, fizessem falta; música farsola, que acompanhou roupas farsolas, programas de televisão farsolas que, já então, eram maus. E desprezo a nostalgia política que enche as conversas em rede, promovida por locutores políticos, DJs do sound bite: sound biltres: o socialismo Che Guevariano, o fascismo desenterrado da vala comum e o vampirismo Thatcheriano.
Não entendo a nostalgia, não a sinto. Talvez, do mesmo modo que alguns têm defeitos no centro da fala ou da locomoção, eu tenho um defeito na ligação entre o centro da memória e o da emoção. Pode ser que a identidade de uma pessoa, quando é construída durante a adolescência e juventude, seja  marcada pela banda sonora da época, pelas roupas, penteados e ideias que usou quando era nova; e assim, muitos desses hábitos e gostos anacrónicos se mantenham. Comigo não resulta. Saudades tenho, nostalgia não. Saudades tem-se do que morreu, não do que se desenterra.
Do passado, do meu passado social, só sinto falta do velho Pap’Açorda. Mais agora, que a oferta de restauração é vasta e variada, e quase sempre pretensiosa. Sinto falta do bom gosto dos arranjos florais, do balcão onde me recebiam sem salamaleques nem falsos sorrisos, da cor rosa, dos lustres, do bruaá sempre animado, mas nunca excessivo, dos olás, das costeletas de borrego panadas, do esparregado, das entradas e, como muito bem lembrou o João, da mesa reclusa junto ao balcão, cheia de amigos uma vez por ano, num almoço que durava até às quatro da tarde.
Nada do passado me faz falta. Só o velho Pap’Açorda, com que sonho nesta deriva pelo azul. Se calhar a minha identidade foi construida com costeletas de borrego panadas e bom vinho.

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