Ter certezas no amanhã é conjugar o
futuro-mais-no-presente. Imagino um futuro, planto uma ideia, faço um plano e,
se tiver sorte, se tiver trabalhado, se os deuses me soprarem ventos favoráveis,
chego lá. E, do imaginar ao chegar, atribuo-me a causa. Fui eu. Tudo, ou quase,
foi resultado do meu arbítrio. É esta doce ilusão de agência, de livre vontade
que faz valer a pena viver.
Criamos fantasias e futuros a que
tentamos chegar com a força da vontade, fazendo promessas as nós próprios e aos
outros, e, às vezes, chegamos lá. Outras vezes, somos nós que desistimos, outras
ainda, quando os astros se desalinham, são as circunstâncias que desistem de
nós; e então lembramo-nos de que a incerteza é a natureza do futuro.
Aqui fechado, sei, com alguma
probabilidade, quais serão as minhas acções amanhã. Já o mês que vem é mais do que
nubloso e o ano que vem apenas sombra. Não consigo lá plantar uma ideia porque
não consigo enxergá-lo. O aumento da incerteza é inversamente proporcional à
doce ilusão de arbítrio.
Já era
difícil antes desta pandemia. De acordo com o IMF e o WUI, a incerteza dos cidadãos
em 2018/19 era a mais alta das últimas décadas. Chamavam-lhe incerteza radical.
Agora, ao clima, à precaridade, à desigualdade pornográfica, ao esbanjar de
recursos, acrescentou-se pandemia e a maior recessão de sempre. Imagine-se
2020/21. Que nome lhe daremos, incerteza terminal?
O mundo mudou muito nos últimos vinte
anos. Nós, por cá, nem tanto. Nesta pequena experiência lusa, naturalmente vivemos
tentando fazer e pensar o de sempre, confortáveis com hábitos, modelos e ideologias
anacrónicas, passados falhados, que hoje requentamos com a espectativa de uma previsibilidade
que sabemos (desconfiamos) incapazes de produzir.
Mas o futuro tem vindo a ser produzido
e é propriedade das grandes empresas da inteligência das máquinas que,
paulatinamente, há vinte anos exploram o maná de dados e recursos
comportamentais que circula na internet das pessoas e das coisas. As maiores
corporações do mundo dedicam-se hoje ao negócio dos futuros comportamentais, produzindo
e vendendo previsibilidade a um mercado sedento de certeza. Até agora, graças à
incompreensão que, com a excepção dos sacerdotes do digital, todos nós
partilhamos, fizeram-no furtivamente, arrebanhando a informação, iludindo a
legislação, escondendo o conhecimento, os algoritmos e os processos. Até agora
furtaram-se ao escrutínio dos cidadãos, que não se importam dos presentes que
recebem em troco do seu arbítrio.
As últimas décadas demonstraram que a
inteligência das máquinas consegue produzir mercados previsíveis. O próximo
passo é a produção de sociedades previsíveis, desta vez com o beneplácito dos
cidadãos angustiados com a incerteza.
Todo este relambório soa distópico,
produto de uma mente sombria, deficitária em vitamina D, depois de tantas
semanas fechada em casa a ler o livro The Age of Surveillance Capitalism da
Shoshana Zuboff. Mas é um grande livro e é para onde apontam os sinais.
O que me angustia não é estar preso em
casa. É estar preso no presente, sem futuro. É pensar que o futuro não nos
pertence. Nem a Deus pertence. Mas às empresas da inteligência das máquinas que
têm hoje capacidade de empurrar, dirigir e condicionar a sociedade, sem
qualquer escrutínio eficaz e democrático.
Enfim. Vou ler o Dom Quixote.
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