17 de maio de 2020

8. Acabou-se o velho capitalismo








Ter certezas no amanhã é conjugar o futuro-mais-no-presente. Imagino um futuro, planto uma ideia, faço um plano e, se tiver sorte, se tiver trabalhado, se os deuses me soprarem ventos favoráveis, chego lá. E, do imaginar ao chegar, atribuo-me a causa. Fui eu. Tudo, ou quase, foi resultado do meu arbítrio. É esta doce ilusão de agência, de livre vontade que faz valer a pena viver.
Criamos fantasias e futuros a que tentamos chegar com a força da vontade, fazendo promessas as nós próprios e aos outros, e, às vezes, chegamos lá. Outras vezes, somos nós que desistimos, outras ainda, quando os astros se desalinham, são as circunstâncias que desistem de nós; e então lembramo-nos de que a incerteza é a natureza do futuro.
Aqui fechado, sei, com alguma probabilidade, quais serão as minhas acções amanhã. Já o mês que vem é mais do que nubloso e o ano que vem apenas sombra. Não consigo lá plantar uma ideia porque não consigo enxergá-lo. O aumento da incerteza é inversamente proporcional à doce ilusão de arbítrio.
Já era difícil antes desta pandemia. De acordo com o IMF e o WUI, a incerteza dos cidadãos em 2018/19 era a mais alta das últimas décadas. Chamavam-lhe incerteza radical. Agora, ao clima, à precaridade, à desigualdade pornográfica, ao esbanjar de recursos, acrescentou-se pandemia e a maior recessão de sempre. Imagine-se 2020/21. Que nome lhe daremos, incerteza terminal?
O mundo mudou muito nos últimos vinte anos. Nós, por cá, nem tanto. Nesta pequena experiência lusa, naturalmente vivemos tentando fazer e pensar o de sempre, confortáveis com hábitos, modelos e ideologias anacrónicas, passados falhados, que hoje requentamos com a espectativa de uma previsibilidade que sabemos (desconfiamos) incapazes de produzir.
Mas o futuro tem vindo a ser produzido e é propriedade das grandes empresas da inteligência das máquinas que, paulatinamente, há vinte anos exploram o maná de dados e recursos comportamentais que circula na internet das pessoas e das coisas. As maiores corporações do mundo dedicam-se hoje ao negócio dos futuros comportamentais, produzindo e vendendo previsibilidade a um mercado sedento de certeza. Até agora, graças à incompreensão que, com a excepção dos sacerdotes do digital, todos nós partilhamos, fizeram-no furtivamente, arrebanhando a informação, iludindo a legislação, escondendo o conhecimento, os algoritmos e os processos. Até agora furtaram-se ao escrutínio dos cidadãos, que não se importam dos presentes que recebem em troco do seu arbítrio.
As últimas décadas demonstraram que a inteligência das máquinas consegue produzir mercados previsíveis. O próximo passo é a produção de sociedades previsíveis, desta vez com o beneplácito dos cidadãos angustiados com a incerteza.
Todo este relambório soa distópico, produto de uma mente sombria, deficitária em vitamina D, depois de tantas semanas fechada em casa a ler o livro The Age of Surveillance Capitalism da Shoshana Zuboff. Mas é um grande livro e é para onde apontam os sinais.
O que me angustia não é estar preso em casa. É estar preso no presente, sem futuro. É pensar que o futuro não nos pertence. Nem a Deus pertence. Mas às empresas da inteligência das máquinas que têm hoje capacidade de empurrar, dirigir e condicionar a sociedade, sem qualquer escrutínio eficaz e democrático.
Enfim. Vou ler o Dom Quixote.



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